Fiz um exercício desde o último final de semana. Falei para várias pessoas, entre mensagens para amigos e alguns encontros presenciais, como o funcionário do supermercado e o senhor da banca de jornal, que a seleção tinha jogado muita bola na vitória por 5 a 0 sobre a Bolívia, indo para cima, inteira no campo, buscando o gol, intensa até o fim. Numa pequena amostragem de cerca de 40 respostas, praticamente todas foram no mesmo tom: "mas era a Bolívia, né?"
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Não foram poucos os que disseram que são só nesses jogos que o Neymar arrebenta. Outros muitos comentaram que lá vem o Tite de novo enganando contra time ruim. Um falou que no primeiro lance do jogo já desligou a TV. Dada a fragilidade aparente do rival, ele ficou com preguiça de ver os brasileiros deitando e rolando em ritmo de treino.É claro que qualquer espectador de qualquer esporte consegue ponderar a fragilidade adversária quando vê uma vitória tranquila. O jogo fala muita coisa, ele é cheio de acontecimentos que claramente não vão acontecer contra uma equipe melhor, mais bem armada, com mais resistência. A Bolívia, historicamente uma das piores visitantes do continente, veio a São Paulo com um elenco todo desfalcado. Difícil pensar num time mais frágil para o Brasil abrir as eliminatórias para a Copa do Mundo. Isso tudo está posto.
Mas há uma preguiça para se falar de seleção brasileira. Há certos padrões pré-estabelecidos para o time pentacampeão do mundo, parâmetros que definem que num jogo contra a Bolívia em casa não há o que se elogiar, uma goleada é mera obrigação. Ainda que esteja de acordo sobre o placar - sim, o Brasil não tinha outra alternativa aceitável a não ser um resultado tranquilo na sexta-feira -, há um jogo a ser visto. Essas certezas não deveriam engessar a conversa sobre a atuação, ainda mais de um time que não joga toda semana.
É um debate difícil. O assunto já surge desgastado, fruto de anos de uma relação cheia de ruídos com o torcedor, e daria para passar um texto todo só falando sobre isso, o velho ponto sobre a proximidade e o afeto do brasileiro com o time nacional nos dias de hoje. Mas, em resumo, dá para dizer que o vínculo é complicado.
Isso porque são muitos temas que atravessam o simples ato da camisa amarela entrar em campo. O calendário acumulado com o dos clubes, um esgotamento do modelo de amistosos, a falta de títulos de Copa do Mundo, uma certa carência de grandes ídolos consolidados, as tantas insinuações sobre cada lista de convocados, uma nostalgia exagerada sobre desempenho coletivo em outros tempos. Não dá para ser indiferente à amarelinha, mas não me surpreenderia se uma pesquisa apontasse que a maioria dos torcedores de futebol do país acham a equipe nacional um porre, um saco, uma chatice, e que não fez muita falta passar quase um ano sem vê-la em campo.
Mas as pessoas entendem o futebol. Sabem quando um time faz uma partida inspirada e quando a estratégia e os combinados funcionam. Semanas atrás, na mesma cidade e envolvendo jogadores dos mesmos países, o Palmeiras venceu o Bolívar por 5 a 0 pela Copa Libertadores, e nem por isso são jogos iguais, de mesmo comentário. De semelhante, a impressão óbvia de que tinham de vencer facilmente um visitante de nível bem inferior. E só.
É por isso que contra o Peru na noite desta terça-feira, em Lima, Tite e os selecionados precisam, além de vencer, superar o "mas era a Bolívia". Do contrário, vai se perder a grande força ofensiva mostrada por Renan Lodi, a capacidade de Douglas Luiz no meio, a eficiência das tramas para os gols de Coutinho e Firmino. Um jogo muito além do que se imaginava, um Neymar (que quase foi desfalque) jogando solto, acertando os dribles e com confiança. Mas, claro, era a Bolívia.
Agora o outro lado impõe, em tese, um desafio maior. O Brasil perdeu para o Peru num amistoso em setembro do ano passado, exatamente numa fase ruim da seleção. Ganhou bem duas vezes na Copa América, é verdade, mas tem seus duelos complicados quando vai ao país vizinho, por exemplo empatando duas partidas recentes em solo peruano pelas eliminatórias. Em 2003, com Kaká, Rivaldo e Ronaldo na frente, e também em 2007, no time de Dunga armado com Kaká, Ronaldinho, Robinho e Love.
Não há muito atalho para a seleção convencer a torcida. Tite conseguiu quando assumiu em 2016 e alcançou uma rara popularidade, vencendo os jogos, jogando bem e dando novo ar para uma equipe que vinha de um certo baixo-astral com o Mundial de Felipão e depois dois anos de Dunga. Nesse recomeço, o foco é numa boa caminhada rumo à outra Copa do Mundo, e além dos pontos na tabela isso passa por retomar a confiança e o afeto do torcedor. Ainda que alguém sempre vá dizer que 'ah, mas era o Peru', já é um jogo maior desta vez.
