Naquele que provavelmente foi o maior fim de semana na história de um clube de futebol, o Flamengo comemorou os títulos de Libertadores e Brasileirão em menos de 24h. E em meio às comemorações tão grandes quanto o feito, mais uma vez surgiu uma polêmica envolvendo o campeonato nacional.
Este texto não vai falar sobre a questão 1987, mas sim a respeito de considerar ou não o feito do Santos em 1962 e 63, quando também foi campeão brasileiro e da Libertadores no mesmo ano. E é justamente o Mundial de Clubes, que vem passando por transformações consideráveis nos últimos anos e será mudado futuramente, que ajuda a explicar a relevância do feito do time de Pelé e outros astros.
Em outubro de 2019, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, anunciou um novo formato para o Mundial de Clubes, que vai levar em consideração o conceito da palavra mundial e contará com 24 equipes a partir de 2021.
“Esta é a primeira e verdadeira copa do mundo para times e clubes de todo o mundo”, disse Infantino na ocasião. A primeira.
O discurso do presidente da FIFA é bastante semelhante ao que defende “o Brasileirão de verdade”, apenas a partir de 1971, como uma coisa absoluta e imutável. A ideia de renegar o passado apenas do futebol brasileiro pode deixar de fazer sentido se pensarmos no conceito que “campeão mundial” poderá ter nas próximas décadas para quem pensa desta forma.
Imagine um futuro em que títulos como o conquistado pelo Flamengo em 1981, assim como todos os anteriores a 2021, sejam desconsiderados como mundial. Quando o time de Zico bateu o Liverpool, colocando “os ingleses na roda”, como canta a torcida, o campeão do mundo foi definido em apenas um jogo. O Corinthians atingiu o mesmo feito em 2013 após disputar duas partidas.
ReproduçãoDefender que tais títulos não foram mundiais, já que a disputa contou apenas com clubes de dois continentes e somente um punhado de jogos, seria bem parecido ao argumento de quem desconsidera a Taça Brasil e o Robertão, esnobando a conquista ao dizer que seis jogos não são o suficiente para definir um campeão brasileiro.
Acontece que para disputar a Taça Brasil, criada em 1959, o time tinha obrigação de vencer o campeonato estadual – algo que décadas passadas tinha uma relevância imensa. E, para ficarmos no exemplo do Santos, o campeão paulista de 1962 garantiu o título, e classificação para o certame brasileiro da época, após 30 jogos.
Flamengo é campeão brasileiro de 2019 e iguala Santos de Pelé
Para ser o melhor time do Brasil após cinco partidas, era necessário ter sido o melhor de seu estado após 30 duelos disputados. Assim como antes de conquistarem o mundo, sempre em menos de cinco jogos, Flamengo e tantos outros gigantes precisaram levantar primeiro a Libertadores.
Dois campeões no mesmo ano?
O futebol, assim como a maioria dos esportes de massa, é um espelho de sua sociedade. E o Brasil, convenhamos, é cheio de inconsistências, injustiças e confusões. Resumindo: está longe de ser um exemplo histórico de organização (e todos nós esperamos que isso mude um dia).
Por isso, dois campeões nacionais não chega a ser novidade em um cenário de transformação e reestruturação das provas: o Flamengo, por exemplo, comemora o tricampeonato estadual 1978, 1979, 1979; em 2000, o Corinthians foi campeão mundial pela Fifa e o Boca Juniors levantou a Intercontinental. O novo milênio começou com dois campeões mundiais, e é isso mesmo – parte de um processo de mudança organizacional do campeonato. Em 2000 o Corinthians foi tão campeão quanto o Boca Jrs.
Nomenclatura dos torneios e mudanças de formato
Algumas pessoas se esquecem, ou não sabem, mas o Brasileirão desde 1971 não teve apenas infinitas mudanças em sua fórmula e número de participantes, como também seis nomes distintos. Campeonato Nacional de Clubes (1971 a 1974), Copa Brasil (1975 a 1979 e, depois, 1984, 1986 e 1987 – módulo amarelo), Taça de Ouro (1980 a 1983 e, depois, 1985), Copa União (1987 e 1988), Copa João Havelange (2000) e, enfim, Campeonato Brasileiro (1989 até hoje, exceção a 2000).
A continuidade da organização sequer foi tão marcante. O formato mais bem organizado, de fato, começou em 2003 com a introdução dos pontos corridos.
Relação Taça Brasil e Copa do Brasil é falha
Em meio à discussão sobre a unificação, a Taça Brasil às vezes é colocada de lado por, ao longo dos anos, ter perdido um pouco de sua relevância – assim como a Intercontinental foi perdendo um pouco da sua sob os olhos da FIFA, quando a entidade passou a tomar conta do torneio. Quem ignora a unificação compara a Taça Brasil com a Copa do Brasil, mas existe uma diferença importante.
Quando a Taça Brasil foi criada em 1959, tinha como objetivo apontar o máximo campeão do país. Já a Copa do Brasil jamais foi a máxima competição nacional em disputa – além do fato de que era disputada em mata-mata assim como o Brasileirão antes de 2003.
Na Alemanha, a Bundesliga teve sua primeira temporada em 1963, mas o time que é considerado o primeiro campeão alemão da história é o Leipzig de 1903. O Genoa é indiscutivelmente considerado o primeiro campeão italiano, em 1898, após ter disputado três partidas.
Saiba tudo sobre o Mundial de Clubes 2019
Há quem veja a unificação como erro por ter sido oficializada, pura e simplesmente, por decisão política da CBF em um momento de crise. A motivação errada não apaga uma decisão que acertou a forma como deve ser tratada a história dos times que já foram os máximos campeões brasileiros. A motivação era tão errada quanto a forma como a história vinha sendo tratada e contada até então.
A história dos campeões brasileiros passa por eras diferentes e todas precisam ser contextualizadas e valorizadas dentro do que representaram em seu tempo. A partir de 2021 o Mundial de Clubes terá um caráter mais global e mais jogos em seu calendário, mas isso não torna os campeões mundiais anteriores menos campeões mundiais do que eles foram – até mesmo quando em uma única temporada tiveram dois campeões.
