Morocco players.Getty

A Copa de Marrocos contra seus colonizadores

A Copa do Mundo do Qatar já tem sua grande surpresa: o Marrocos está na semifinal da competição e se tornou a primeira seleção da África a chegar tão longe. A classificação veio em um jogo difícil contra Portugal e tem sido comemorada não apenas por marroquinos, como por muitos africanos, povos árabes e muitos brasileiros.

Agora, a brava seleção marroquina encara a França na semifinal e tem a oportunidade de reescrever algumas narrativas.

Caso essa afirmação possa parecer exagerada, a chance que se apresenta é a de dar o troco, pelo menos dentro de campo, por um passado de opressão e imposição de uma cultura estranha à marroquina. Na semifinal, Marrocos vai enfrentar, na sequência, o terceiro país que o colonizou.

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Marrocos ficou em segundo lugar no seu grupo, avançou às oitavas, ganhou da tão comentada Espanha, e mandou o primeiro colonizador para casa. Na fase seguinte foi a vez de Portugal conhecer a sólida defesa marroquina e seu ímpeto mortal no contra-ataque. Mais um colonizador fora.

Cristiano Ronaldo Portugal Morocco World Cup 10 12 2022Getty Images

Contra a França, eles chegam claramente - assim como em todos os outros jogos - na condição de os azarões. E é nisso que podem encontrar forças para continuar surpreendendo mundo todo. O time joga com o peso da sua torcida, que chegou em grande número e é completamente inquieta dentro do estádio, criando a melhor atmosfera para seu país e o verdadeiro inferno para os adversários.

Colonizado x colonizador

Os processos de colonização sempre são terríveis e traumáticos para os colonizados. Eles, porém,geram lucros e riqueza a partir da apropriação de bens e da cultura local para o colonizador. São verdadeiros atentados contra a singularidade de um povo e de uma cultura.

A colonização do Marrocos começou em 1415, quando Portugal invadiu a região, pela cidade de Ceuta, hoje parte da Espanha. Mas a presença lusitana contou com resistência e não permaneceu por muitos anos. No século XIX, cerca de 400 anos mais tarde, franceses e espanhóis invadiram o território, impondo uma divisão das terras e os costumes europeus à região.

Em 1956, sob a liderança do rei Mohammed V, o povo marroquino reafirmou sua independência como Reino de Marrocos.

Por terem vivido sob a opressão de povos estranhos a eles, é simbólico que os jogadores marroquinos e torcida tenham comemorado as classificações usando a bandeira da Palestina, que vive em conflito com Israel e presencia diversos atos do lado israelense que podem ser tratados como crimes de guerra, de acordo com a ONG Human Rights Watch.

Morocco Palestine World Cup 10 12 2022Getty Images

Como escreveu Diego Rodrigues Bericto, na Folha de S. Paulo, essa Copa tem sido marcada pela solidariedade entre os povos árabes. Além da causa Palestina, diversas mulheres iranianas estiveram nos holofotes por acompanharem um jogo de seu país nas arquibancadas enquanto jogadores iranianos deixaram de cantar o hino nacional em apoio aos protestos no país da Ásia.

No Brasil, Marrocos ganhou a simpatia de muita gente por diversas razões. Há uma enorme comunidade árabe em terras brasileiras. Há, também, quem torça por conta da vitória marroquina sobre a Bélgica, algoz do Brasil em 2018. Há quem simpatize com as seleções africanas e também há muitos que deliberadamente ativam, na Copa, o modo "torcer para o mais fraco", algo que pode ter surgido como pura e simples empatia entre colonizados.

De qualquer forma, a seleção do norte da África terá uma torcida enorme para enfrentar o "último chefão" antes de uma idílica final: os antigos colonizadores franceses.

Durante os anos se acostumou a ver seleções africanas e árabes sendo treinadas por técnicos brancos europeus, e assim aconteceu nesta edição com o francês Harvé Renard à frente da Arábia Saudita. Porém, as quatro seleções africanas em 2022 tiveram técnicos com ligações diretas com os países: Gana (Otto Addo), Senegal (Aliou Cissé), Camarões (Rigobert Song) e Marrocos, com Walid Regragui, marroquino nascido na França.

20221206 Walid RegraguiGetty Images

Na Copa do Mundo de 2018, por exemplo, apenas uma seleção africana contava com técnico nativo, com o mesmo Aliou Cissé no comando de Senegal. Os outros três países (Egito, Nigéria e o próprio Marrocos) contavam com treinadores sem ligação direta com o país, sendo um argentino, um alemão e um francês, respectivamente.

O que Walid Regragui fez foi tão grande que nenhum técnico africano tinha sequer alcançado as quartas de final com uma seleção africana. Regragui não apenas alcançou, como avançou rumo à semifinal.

O treinador falou grosso e chamou à uma mudança de perspectiva: "Temos que mudar a mentalidade! Por que não sonhar em ganhar a Copa do Mundo?".

As outras três seleções africanas que tinham chegado às oitavas (Camarões em 1990, Senegal em 2002 e Gana em 2010) eram treinadas por europeus, conforme observou o perfil Ponta de Lança, no Twitter, uma conta de jornalistas brasileiros especializada em futebol africano.

Todos estes elementos denunciam uma quebra com os padrões de pensamento (e de futebol) europeus e um movimento de volta às origens, cada um com a identidade que é peculiar a cada nação. Uma verdadeira decolonização.

No futebol, uma esperança

O futebol é uma das plataformas mais poderosas e eficazes para trazer alegria e esperança a times considerados mais fracos e nações oprimidas historicamente.

Marrocos fez silenciar o técnico espanhol Luís Enrique, que se comprometeu com suas palavras dizendo que a Espanha tinha o melhor futebol da Copa, e também, sem nenhum pudor, acabou com as chances de Cristiano Ronaldo conquistar o título mais importante do futebol.

Morocco celebrate. Getty

Com a melhor defesa da competição - apenas um gol sofrido, sendo esse um gol contra -, Marrocos chega para a semifinal com peito estufado por ter feito a melhor campanha de uma seleção africana em Mundiais e com a admiração de muitos povos ao redor do planeta, que viram naquela subestimada seleção, uma esperança para dias melhores.

E que a tolice preconceituosa, reducionista e limitante dita por tantos formadores de opinião de que a "Eurocopa é a Copa do Mundo sem Brasil e Argentina" nunca mais se repita, para dissabor de nossos colonizadores.

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