Lionel-Messi(C)Getty Images

Deu tempo, Messi

Os meninos lá da rua eram malucos pela Argentina, e a gente descia para a quadra aqueles anos todos, uma vida, chamando o careca de Verón, o baixinho de Ortega, o matador de Batistuta, o cabeludo de Sorín. Até que veio Riquelme. Todos queriam ser Román. Já era madrugada quando a gente entrava para a casa de um e fazia fila na cadeira do computador, internet discada a preço com desconto, para ver o caño a Yepes, uma caneta desmoralizante num Boca e River da virada do século, um vídeo que me lembro como hoje, durava 14 segundos, e quando surgiu um vizinho com gravador de CD a gente foi nas Lojas Americanas, comprou um pacote e queimou a caneta do camisa 10 de nossos sonhos para todo mundo ter uma cópia em casa, o Riquelme rolando de costas a bola pelo meio das pernas do zagueiro rival, quem fizesse um daqueles num contra com o time da rua de trás, nossa.

Eram 20 e poucos do segundo tempo no Estádio Olímpico de Berlim, sexta-feira de véspera de festa junina, a gente apinhado no telão do pequeno bar, a mesa de sinuca no meio do caminho, e o Pékerman tirou o Riquelme, sabe-se lá pensando no quê. A Argentina perdeu para a Alemanha, a Copa ficou sem Román e alguém comentou que pelo menos o time do Bielsa jogava para a frente.

Mais artigos abaixo
Adriano Ribeiro Brazil Argentina Copa America 2004 25072004ANTONIO SCORZA/AFP/Getty Images

No meio disso, clássicos inesquecíveis para todos os gostos. Brasil e Argentina era o jogo, ponto. Os gols de Rivaldo em Porto Alegre, a noite de Vampeta e Alex no Morumbi, os três pênaltis de Ronaldo no Mineirão, o chute do Adriano em Lima, o show de Ronaldinho e companhia em Frankfurt.

A gente combinou, os meninos já crescendo, a vida ficando coisa séria, que no dia que houvesse um Brasil x Argentina em Copa do Mundo ele seria visto lá em São Bernardo, demorasse quantos Mundiais fossem necessários. É sortear os grupos que se começa a rabiscar tabelas e cruzamentos à espera do grande encontro que nunca chega.

Desta vez parecia certo (e quando não pareceu?). Não aconteceu, de novo. Vai ver nunca mais mesmo, que coisa.

Mas a tarde de Brasil e Argentina, essa mistura boa entre rivalidade e admiração, brincadeira e inveja, galhofa e paixão, ela apareceu agora diferente, porque fomos forjados vivendo os grandes jogos, não assistindo. O maior clássico que eu vi em muito tempo não foi dos nossos em campo, mas torcendo por Messi, irônica e intensamente.

Era para ser uma terça-feira daquelas (vai passar, já foi...), e fomos nos acumulando para ver o 10 argentino. "Ele merece". Todo mundo cercando a tela do boteco e repetindo a cada lance, Messi se "maradoneando" e os brasileiros, quem diria, "ele merece". E chegando mais gente, um gol de pênalti, "ele merece", e já no segundo tempo, quando o maior jogador da era do futebol da televisão puxou um croata para dançar, o encanto se fez total. Messi passou por um dos melhores zagueiros da Copa como se caminhasse ali, entre nós numa galeria de centro de cidade, na milonga que lhe é característica mas que tão poucas vezes assistimos em Copas, pedindo carona para ser ovacionado por quem quer que fosse. Começa no espanto, termina no sorriso.

Diego MaradonaGetty

Eu duvidei que daria tempo. Enquanto Messi e Cristiano seguiam acumulando prêmios individuais e subindo juntos os degraus da bola a cada semana, a Copa do Mundo nunca foi primeira página desta história. É como se o grande torneio de todos seguisse especial e único, mas não fosse mais pré-requisito para a eternidade, como foi para Mané, Cruyff, Puskas. Como foi essencialmente para Diego. E como nunca havia sido, e custou a ser, a Messi.

Mas o que a vida quer da gente é coragem, e o rapaz tímido, acusado de ser mais catalão que argentino, a antítese do falastrão e expansivo Maradona, o acumulador de frustrações a cada junho de seleção, ressurgiu em sua melhor versão na semana em que se torna o cara com mais partidas de Copa do Mundo colocando uma dança mundialista, final e tardiamente, 25 para 26 jogos depois, no topo de sua biografia. Não estava tarde. Você é jogador de Copa do Mundo, sim.

O futebol e a vida estão sempre prontos para destruir nossas teorias furadas, ainda mais as nossas, os metidos a conversar assim publicamente sobre isso, e então veio Messi, 35 anos e meio, o cara que gastamos uma vida de saliva berrando que não é na seleção o mesmo do Barcelona, e nos tirou para dançar, como num baile de (zagueiros de) máscaras, largando seus velhos perfis na linha de fundo, invalidando os livros e teses a seu respeito e crescendo na grande área como o camisa 10 que foi projetado às suas costas há quase vinte anos. Deu tempo, Messi.

O fascínio no esporte não deveria ser tão dependente das vitórias ou derrotas, mas o jogo é também seu resultado, e ganhar a final contra franceses ou marroquinos cravaria este gênio na objetividade dos almanaques, tabelas, listas e especiais para sempre. Me lembrei que certa vez um narrador conhecido, acho que foi Fiori Gigliotti, sem muita certeza pois se trata de uma vaga memória de infância meio difusa, mas era alguém no rádio falando que os grandes jogos são as semifinais, que não têm aquela tensão toda das decisões e ainda garantem algum tempo de fantasia até o dia derradeiro, neste caso, da noite de terça até o almoço de domingo. Messi, por esses dias, já é inesquecível. Sorte a nossa.

Publicidade