Ary Borges São Paulo Taubaté Brasileiro A2Rubens Chiri/SPFC.net

Ary Borges, 10 do São Paulo, sonha ser a melhor do mundo sem medo de criticar quem já é

O sol batia forte no campo de society do complexo do Morumbi enquanto as gêmeas Natane e Chaiane treinavam cobranças de faltas. Na barreira, esbanjando bom humor e alternando cobranças de pênaltis, Ary Borges faz sua última batida e sai do campo para conversar com a Goal. A camisa 10 do São Paulo está às vésperas do Choque-Rainha, alusão feita ao Choque-Rei – clássico entre São Paulo e Palmeiras. A expressão foi adaptada ao feminino por essa menina que, ao comentar a declaração de outra Rainha, Marta, não tem medo de fazer críticas. Neste domingo, às 14h (de Brasília), no estádio do Pacaembu, Ary Borges estará em campo contra o Palmeiras pela semifinal do Brasileirão feminino da Série A2.

"Acho que ali não era o momento de ela [Marta] ter feito aquilo de jogar uma 'responsa' para as outras pessoas. Acho que ali era o momento de ela talvez ter jogado a 'responsa' para quem estava lá. Então concordei e não concordei, talvez ela tenha sido infeliz nas coisas que ela falou"

Ariadina Alves Borges nasceu em São Luís, no Maranhão, quase como o bebê do milênio, mais precisamente no dia 28 de dezembro de 1999. Criada pela avó, praticamente não teve contato com seus pais na sua pouca idade, já que, em busca de emprego, ambos deixaram São Luís e rumaram a São Paulo quando Ary tinha entre dois e três anos. Foi exatamente nas praias maranhenses, observada pela avó, que Ary começou a jogar futebol. Seu tio cuidava do campo local e não eram poucas as tardes que ela passava jogando com amigos e primos.

“Minha avó sempre levou numa boa porque era questão de brincadeira, né? Hoje ela é a pessoa que mais me apoia, mas no começo ela era bem: ‘ai, eu acho que isso não vai dar dinheiro, ainda mais para menina’. Minha família sempre foi muito envolvida com esporte, meus tios chegaram a ir para a seleção maranhense, mas ela não deixava, acabava não liberando eles para viajar com a seleção maranhense, porque falava que futebol não ia dar dinheiro. Se para homem ela já tinha esse pensamento, imagina para mulher”, falou a jogadora, que viria sua vida mudar quando aos 10 anos. 

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Foi nessa idade que seus pais decidiram que era o momento de a filha finalmente conhecê-los melhor e morar em São Paulo. “Eu não tinha muitas lembranças [deles]. Eu tinha dois, três anos”, explica a jogadora. No começo, seu pai chegou a duvidar quando o tio falou que ela gostava de jogar futebol. “Meu pai no começo não levou muito a sério – ele é muito sincero com isso. Eu ia para a escola e a tarde tinha uma quadra perto de casa e eu sempre ia jogar. Um dia eu voltei para casa umas seis, sete horas da noite, ele já estava em casa e falou assim para mim: ‘ah, eu te vi jogando lá na quadra, é legal, eu vou te levar numa escolinha dos Meninos da Vila’".

A partir daí, Ary começou a levar, aos poucos, as coisas mais a sério. Havia apenas três meninas na escolinha do Santos, por isso, ela começou a treinar com os rapazes, mas com certa resistência dos meninos. Seu pai foi obrigado a assinar um termo de responsabilidade por causa das diferenças físicas que havia entre ela e os garotos.

Da desconfiança ao grande incentivador de Ary, seu pai foi quem chamou a atenção dela para o Centro Olímpico e para a possibilidade de jogar lá. “Meu pai trabalhava na Vila Mariana, ali perto do Centro Olímpico. Ele chegou um dia em casa e disse ‘eu tenho sempre passado ali pela Avenida Ibirapuera e eu vejo umas meninas com a camisa roxa escrito futebol. Acho que a gente pode ir um dia e ver o que rola por lá, mas acho que lá já é mais sério’”, relata a camisa 10, que viu o Centro Olímpico ser o grande trampolim de sua carreira. Ela chegou ao Centro Olímpico com 11 anos para fazer a peneira ao lado de mais de 90 garotas. Das 90 sobraram cinco, e das cinco só sobrou Ary.

O local não tinha a categoria feminina sub-13, por isso, aos 11 anos, a jogadora foi atuar direto no sub-15. Ela foi crescendo no centro de formação e se profissionalizou ali. Lucas Piccinato, hoje técnico do São Paulo feminino, era o técnico do sub-17 do Centro Olímpico e se mostrou muito importante na trajetória da atleta. Ela passou dois anos no Sport Recife e, no fim de 2018, recebeu uma mensagem de Lucas falando que o São Paulo estava montando um time feminino. Ela não pensou duas vezes. “Sou são-paulina, então quando ele me mandou a mensagem eu já mandei mensagem para o meu pai assim: ‘O São Paulo vai fazer um time e eu vou para lá’, eu só falei assim para ele. Eu não ia recusar, nem a pau eu ia recusar”.

Ary Borges São PauloDivulgação/Instagram @_aryborgesSorriso sincero é uma das marcas mais características da jogadora (Foto: Reprodução/Instagram @_aryborges)

Homem ou mulher no comando? Basta ser competente

Camisa 10 e uma das que faz o jogo acontecer no Tricolor, Ary chama a atenção pela lucidez com que trata dos assuntos no alto de seus 19 anos.  Ela é segura em afirmar que não faz questão de ser treinada por uma técnica mulher, algo que, de fato, nunca aconteceu em sua carreira.

“Acho que às vezes a galera confunde um pouco o fato de a gente querer uma mulher. Acho que vai mais da sua competência. Eu não tenho muito disso de ‘quero ser treinada por uma mulher’. É óbvio que penso e torço para que as mulheres tenham seu espaço, mas acho que é mais questão de competência mesmo”, disse a atleta, que aprovou a chegada de Pia Sundhage à seleção brasileira feminina exatamente pelo seu currículo vitorioso.

“Fiquei super feliz exatamente pelo currículo dela. Acho que tinha outro treinador também capacitado que poderia ir: o Arthur [Elias], que faz um bom trabalho há um bom tempo no futebol feminino. Mas fiquei super feliz também com a escolha da Pia, acho que ela tem tudo para dar bons frutos e quem sabe levar a gente a melhores campanhas na Copa do Mundo e nas Olimpíadas”, disse Ary. A jogadora é considerada uma das maiores promessas do futebol feminino no Brasil. Ela estava no grupo que foi campeão Sul-Americano sub-20, em 2018, no Equador.

Ary Borges Campeã Sul-Americano Sub-20 FemininoAry fez parte da seleção brasileira campeã do Sul-Americano sub-20, em 2018 (Foto: Reprodução/Instagram @_aryborges)

A chegada de Cristiane ao São Paulo é considerada “bem especial” por Ary, principalmente pela experiência e rodagem internacional, já que em campo a artilheira ainda não conseguiu estrear devido a lesões. “Mil vezes ter ela ao meu lado do que contra”, brincou Ary, que revelou que costuma chamar a atacante ou pelo sobrenome, Rozeira, ou até mesmo de Cris Zoeira.

As cobranças de Marta, a Rainha

Cristiane é vista por Ary como a segunda maior referência do Brasil no futebol feminino, atrás, obviamente, de Marta. Após a eliminação do Brasil para a França, na Copa do Mundo feminina, a seis vezes melhor do mundo foi aos microfones para cobrar as novas gerações do futebol feminino. Com personalidade e opinião própria, Ary se permitiu discordar, em partes, da Rainha do futebol brasileiro.

“Para ser bem sincera, eu concordei em partes e discordei em partes. Achei legal ela jogar um pouquinho de responsabilidade para essa nova geração, que talvez a gente tem que acordar um pouco, se ligar um pouquinho mais, cuidar do corpo e tudo mais. Mas acho que ali não era o momento de ela ter feito aquilo de jogar uma ‘responsa’ para as outras pessoas. Acho que ali era o momento de ela talvez ter jogado a ‘responsa’ para quem estava lá. Então, concordei e não concordei, talvez ela tenha sido infeliz nas coisas que ela falou”, afirmou Ary, que completou explicando que o discurso poderia ter sido direcionado aos cartolas da CBF. “Ela só cobrou uma parte, faltou cobrar a outra”.

São Paulo Feminino Ary Otilia Jaque BrunaDivulgação/Instagram @_aryborgesEm cima: Ary Borges e Bruna Cotrim. Embaixo: Jaqueline Ribeiro, Ottilia Grassetti e Andressa Anjos (Foto: Reprodução/Instagram @_aryborges)

Sempre olhando para o futuro, a principal crítica de Ary Borges ao atual cenário do futebol feminino no Brasil é a falta de investimento nas categorias de base.

“Essa nova geração precisa de renovação e o que eu mais sinto falta é o investimento nas categorias de base do futebol feminino. Você pega a molecada [homens], a maioria dos clubes tem sub-9, sub-11, sub-13, sub-15, 17, 19, 20, 23, aspirantes e por aí vai. Tem um monte, eles criam categoria de base, calendário longo, Copa do Brasil, Brasileiro, eles inventam [tudo] para os moleques jogarem. E no feminino a gente não tem isso. Então, o que mais falta hoje pro futebol feminino alavancar e ter uma nova geração para você cobrar resultado é isso: investimento na base e na categoria. Não falo isso só para a minha geração, penso também para as gerações futuras. Porque querendo ou não eu sou da nova geração, mas ao mesmo tempo já estou um pouquinho mais velha, já tenho 19 anos. Tem as meninas que estão vindo ainda. Então é isso, é investimento na base”, falou, com convicção.

O Choque-Rainha, termo cunhado pela própria Ary Borges, em uma alusão ao Choque-Rei, é válido pela semifinal do Brasileirão Série A2 e coloca duas das melhores equipes frente a frente. Mesmo que os dois times – São Paulo e Palmeiras – tenham ‘ressurgido’ para o futebol feminino apenas esse ano, Ary diz que a rivalidade é gigante entre elas.

“A gente sabe a camisa que a gente representa, a história que tem, falo até pelas meninas do Palmeiras, porque eu tenho amigas lá, principalmente da época da seleção. A gente brinca ‘amigas, amigas, clássico à parte’. Dentro de campo é cada uma defendendo sua camisa, a gente tem consciência disso e sabe da rivalidade. O time inteiro tem consciência do quão pesado é jogar um clássico vestindo a camisa do São Paulo”, afirmou a meia-atacante, que marcou um golaço contra o Palmeiras no Paulista de 2019 e disse que quer repetir o feito, mas se contenta se “for um feinho também”.

Caso o Tricolor passe pelo Verdão nas semis, encara Grêmio ou Cruzeiro na finalíssima. Para ela, seria a oportunidade perfeita para realizar o sonho de jogar no Morumbi, pedido que ela diz que pretende fazer à diretoria caso chegue à final. Por enquanto, os jogos do São Paulo têm sido no Pacaembu.

Messi referência

Como qualquer jogadora, Ary Borges tem seus ídolos e referências. Lionel Messi é o primeiro nome que aparece na sua boca, sem hesitação, quando perguntada sobre suas inspirações. Fanática pelo argentino, ela disse que discute “bastante com quem fala que o Cristiano Ronaldo é melhor”.

Já no futebol feminino, Ary dá a grande prova das altas expectativas que ela projeta sobre si mesma. Ela já havia declarado anteriormente que sonha ser a melhor jogadora do mundo um dia. E não mudou o discurso, esbanjando confiança.

“No feminino, falo que tenho orgulho da Ary daqui a dez anos. A Ary daqui a dez anos é a minha grande ‘ídola’, porque acho que terei orgulho do que serei em dez anos”, concluiu a camisa 10.

Ary vive o melhor momento da carreira, joga pelo time do coração e já é cotada para ser uma das grandes líderes da próxima geração de atletas na seleção brasileira. O futuro de Ary Borges parece brilhante. E ela, mais que ninguém, sabe disso.

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