Daniel Alves Brasil Brazil seleção brasileiraLucas Figueiredo/CBF

No 'Cascudão' do Brasil, Dani Alves e os meninos jogam para confundir

Existe na cultura do futebol de várzea, pelo menos o que me ensinou tudo na vida no ABC Paulista, a divisão dos times em dois quadros. O primeiro é o principal, o adulto, também chamado de Esporte, o time dos melhores jogadores física e tecnicamente; o segundo, que faz a preliminar, tem em tese um nível menor, na reunião entre os reservas do time de cima, alguns mais velhos e muitos garotos ainda em desenvolvimento, uma mistura de veteranos com aspirantes. Esse é também chamado de Cascudão.

O sonho do segundo quadro é ter uma identidade própria, vencer seus jogos e mostrar seu valor dentro do clube, como prova de capacidade pessoal e uma certa provocação aos boleiros que entram em campo na sequência. Quando esse elenco menos badalado vai bem, é natural ir com moral fazer um banco no jogo de fundo, provocando o treinador, cavando um espaço.

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Capitão do Cascudão de Tite que vai a campo contra Camarões, Daniel Alves disse na coletiva de véspera que este é o grupo mais equilibrado que ele já viveu nesses quatro ciclos de Copa na seleção. Concordo. Talvez o desequilíbrio seja ele próprio, tanto na autoconfiança pessoal, o exagero de sempre, quanto pelo fato de estar sem clube, mais precisamente apenas treinando desde a virada para o mês de outubro depois de uma sequência discreta no Pumas, do México, cercado agora de nomes importantes nas principais camisas do mundo.

É difícil que a atuação do lateral com mais títulos na história resulte em indiferença. Se Daniel conseguir ser um construtor de boas jogadas, conduzindo a bola com qualidade até os atacantes, poderá ficar mais claro o porquê de ter sido incluído na lista. Caso algum camaronês tenha espaço a seu lado para cruzar, servir ou finalizar, pronto, estará cristalina como a água a ideia de que o jogador mais velho a defender o Brasil num Mundial aumenta o risco defensivo de uma seleção cujo goleiro ainda não foi visto no Qatar.

No meio termo, a convocação de Daniel é justa, pela baixa concorrência e por oferecer essa possibilidade de lateral com mais bola para assinar lances ofensivos em caso de necessidade. É também natural a desconfiança. É melhor ainda um jogo de começo contra uma seleção animada, sonhado com a vaga, para deixar o campo falar. Aos 39 anos, ele quer bagunçar nossas certezas. A ver.

Rodrygo Brasil Mundial Qatar 2022Getty Images

No mais, além do privilégio de se jogar no maior palco possível, a oportunidade é especialmente relevante para o quarteto de ataque. Rodrygo, já jogador do primeiro quadro, terá tempo para se firmar como protagonista de Tite, ainda mais com a difícil confirmação da volta de Neymar – restarão mais três dias para o mata-mata. Antony e Martinelli, inevitavelmente e pelo menos um deles, vão sempre a campo no segundo tempo e podem dar esse passo de confiança para a segunda fase com uma boa atuação, uma assistência, um lance de efeito. E Gabriel Jesus, quatro anos e meio depois, tem o momento ideal para derrubar o estigma de ser um 9 sem gols na Rússia, um grande peso para um centroavante de então 21 anos, hoje 25. Não é normal haver tempo para um jogo de reservas assim, completinho, trocando até o goleiro. Eles vão a campo para confundir convicções, da crítica, da torcida e do treinador, que enxergam na equipe titular um onze muito seguro, redondinho.

A definição do grupo E na quinta-feira não se explicará no futuro visitando a Wikipedia. Será ainda insuficiente assistir ao vídeo dos melhores momentos ou abrir os sites de estatísticas, porque até o intervalo tudo era de um controle ordinário, vitórias simples das campeãs do mundo que significavam a correção de rota para a Alemanha, e não seria demais apostar que os dribles de Musiala poderiam chegar até a última semana do torneio.

mitoma japan(C)Getty Images

Mas o Japão voltou para o segundo tempo virando o jogo contra a Espanha, a Costa Rica fez o mesmo diante da Alemanha, e por um instante se classificavam juntas, mas os alemães reviraram, e aí os espanhóis já não precisavam de mais nada, também os japoneses, e voltou o marasmo, mas um marasmo do avesso, pautado pelo líder Japão na vitória com menor posse de bola da história das Copas desde que se mede esse negócio. Loucura.

Os jogos de futebol têm histórias muitas vezes difíceis de se elaborar em racionalidade. Está tudo bem e de repente desmorona, uma bola que resolve brincar de ilusão de ótica e seguir dentro de campo, um gol contra do grande goleiro da geração, uma montanha-russa mental que vai da eliminação a um caminho favorável até as semifinais, do sossego ao caos, e vice-versa, num estalo. A bola também entra, e não entra, por acaso, fazer o quê, influenciada por eventos que são imprevisíveis. O desenrolar de dois jogos simultâneos causa reverberações confusas, três partidas em campo neutro em nove dias, atípicas, aleatórias, no frescor do momento e com o peso da história, desafiando grandões e azarões, obviedades e chances pequenas. O Japão ganhou de dois campeões do mundo e perdeu para a pior defesa do Qatar, na maravilha e na circunstância ímpar do mês mais legal que existe. Fez mais gols nos pedaços de jogos que foi melhor, fez nenhum quando deveria ter sido melhor por mais tempo, e isso bastou.

Na última vez que corremos com conclusões imediatas creditamos um extraordinário 7 a 1 à estrutura do futebol alemão, no contraponto ao caso brasileiro, como se o desenrolar da partida fosse apenas ato contínuo do caminho até ali. Então convém ter calma antes de sairmos cravando teorias definitivas sobre identidade, trabalho, escola de futebol etc. O plano de jogo do Japão, classificado, e a forma de jogar da Alemanha, eliminada, aconteceram aqui e agora, e esse é o encanto, o do presente, mais que dissecar de forma retroativa os porquês de cada fiapo de bola da linha para cá, da linha para lá. Os quatro times de um grupo de Copa do Mundo trabalham e chegam no jeito que parece mais adequado e favorável para seguir adiante. Dois conseguem e dois não, é inevitável.

A primeira fase do Mundial teve jogos bons e ruins, me parece que na média das últimas duas edições, mas ficará marcada pela emoção da rodada final. As seleções de Equador, Irã, México, Tunísia e por fim Bélgica viveram quedas das mais dramáticas, uma bola que insiste em bater em Lukaku e não entrar, duas, três, quatro, cinco vezes, e se guarda uma só estaríamos dizendo que no final a geração belga mostrou que nem tudo está perdido. As teorias ficariam sobre a despedida da Croácia, nesse exercício maluco que é nossa busca inútil e incansável tentando entender o futebol, indomesticável.

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