Kylian Mbappe - messi - world cup 2022 - France  - Argentinagetty

A final, indomesticável, não se explica - só restará o videotape

Eu também queria ter vivido o Pelé do Rassunda, o Mané do Nacional de Santiago, o Diego do Azteca, mas não dá para pedir muito mais do que uma final de Copa do Mundo do tamanho desta vista no Lusail, fantástica sob todos os olhares possíveis, um jogo em sua totalidade, corda esticada do início ao fim, um espanto.

Faltam até palavras a serem escritas no quente, porque o jogo que parecia claro e controlado – e seria muito mais fácil falar do sucesso de Di María ressurgindo como ponta-esquerda ou do domínio de Fernández e De Paul num primeiro tempo impecável – se mostrou indomesticável, e tentar explicá-lo não seria apenas inútil como inviável. Só restará colocar o videotape.

O último título da Argentina remetia a 1986, a derradeira disputa antes do nascimento de Lionel Messi. O reencontro com o Mundial vem em 2022, o primeiro torneio após a morte de Maradona. A vida se conta por Copas do Mundo, e o drama albiceleste, especialidade da casa, só podia vir num empate cedido no fim do tempo normal, outro na prorrogação, e uma conquista nos pênaltis depois de um 3 a 3 eterno em quase duas horas e meia.

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Messi terminou de interditar suas velhas biografias, atualizando a cada rodada seu jogo mais impressionante com essa camisa. Terminou sua quinta Copa, aquela em que se tornou o recordista de jogos no evento, com dois gols na final e o título que perseguiu, e que o perseguiu, por toda uma vida.

Em sua jornada do herói particular e única, desafiando o mito clássico, o chamado ainda garoto, em 2006, o encontro com o mentor, Diego, como técnico em 2010, a recusa em ser deus, em 2011, a frustração na primeira provação, em 2014 (como jogou mal na final!), o fundo do poço em 2016, pedindo um tempo de tanta pressão, a frieza insossa na estranha tentativa de 2018, a inesperada retomada do protagonismo em 2021, e a grande conquista, agora e finalmente em 2022, para iniciar a volta ao mundo real junto de sua gente. O que Messi quer agora? Só jogar bola campeão do mundo.

E se por muito tempo se disse, às vezes com razão, outras com certo exagero, que Messi não alcançava grandes resultados por falta de boas companhias, a noite de seu entorno foi de cinema. Di María decidiu o primeiro tempo com um pênalti e um tapa de gol, Enzo Fernández e De Paul chamaram um jogo de Copa Libertadores que custou a ser entendido pelos franceses, Romero e Otamendi inviabilizaram o ataque rival pela maior parte do tempo, Mac Allister foi o auxiliar brilhante que o fez ser titular. Se faltou um golzinho de um centroavante (quantas chances, Lautaro), sobrou um milagre do goleiro Dibu Martínez, uma intervenção para a história num mano a mano de último lance de jogo de 120 minutos que no fim é o que garante todo esse discurso. O resultado foi salvo pela perna esquerda do goleiro, é um jogo, não tem muito como escapar, afinal o próprio jogo é resultadista, faz parte.

Do outro lado havia um senhor jogador de futebol, um menino de quatro gols em finais de Copa com apenas 23 anos, três na noite do Qatar, se metendo entre os grandes a cada tapa na bola. É inevitável lembrar da atuação da França com certa frustração, onde até 60 e poucos minutos o jogo tinha mais gosto de goleada argentina, mas primeiro um pênalti e depois um bate-pronto de Mbappé retomaram a igualdade do placar. Na prorrogação ele provocou mais um pênalti, marcou, driblou rumo à área, arriscou, foi o estorvo que é como ninguém no futebol atual. Um furacão. O homem do mês não houvesse o camisa 10 do outro lado. Que bom que o final do jogo, mesmo num dia menos inspirado de seu coletivo, foi coerente ao nível de bola que ele tem apresentado. Artilheiro com méritos. Vai rabiscar brincando o recorde de Klose nos Estados Unidos.

O enquadro de Scaloni em Deschamps foi surpreendente menos pela capacidade do quadro sul-americano, mas mais pela regularidade francesa, já que não estávamos acostumados a ver esse time tão perdido em campo. Griezmann não viu a bola, Giroud e Dembelé acabaram sacados antes do intervalo, uma loucura que fazia todo sentido. Méritos totais do desenho argentino e do ritmo imposto. Jogar em casa, apoiada pela maior torcida do Mundial, fez diferença para engolir como numa quarta-feira de Monumental de Nuñez.

Minha seleção da Copa, no quente da final e talvez permitindo algum exagero, tem a entrada de mais três campeões, o goleiro decisivo, um zagueiro que se agigantou no maior dia e um volante que fez da final uma pelada de fim de ano: Dibu Martínez; Hakimi, Cuti Romero (ou Otamendi, que dividam), Gvardiol e Theo Hernández; Amrabat, Enzo Fernández, Modric e Griezmann; Messi e Mbappé. Menção honrosa a Livakovic, Bono, Saiss, Otamendi, Bellingham, Tchouaméni, Kovacic, Ounahi, Bruno Fernandes, Saka, Kane, Julián Álvarez. De Paul e Di María fizeram final de gente grande demais. Do Brasil eu colocaria nesse primeiro nível apenas Thiago Silva. O melhor técnico ainda é o marroquino, Walid Regragui, à parte o ato final de Scaloni.

Desconfortável passar um mês falando de futebol enquanto tantas colegas tiveram de conviver com assédio, violência (que muitas vezes se dá com um mero olhar) e preocupação num país como o Qatar. A Copa do Mundo é de todo o planeta, mas não deveria ser realizada num contexto em que o simples fato de ser mulher, e não homem, torna sua presença perigosa e arriscada. Esperamos que os relatos e denúncias diante de violações básicas aos direitos humanos impactem encontros do tipo no futuro, e fica meu respeito às que foram ao Oriente Médio. A perseguição a mulheres e homossexuais é inaceitável e extrapola a ideia de alteridade. O descaso com os trabalhadores que ergueram o torneio também não é exclusividade local, mas ali acabou, sim, potencializado. Que o mundo do futebol seja menos conivente e alienado nas próximas.

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