Pergunte a James Milner qual seu momento preferido desta temporada até agora e você deve se surpreender com a resposta.
Não é seu gol no último minuto contra o Leicester em outubro, ou a vitória sobre o Manchester City em Anfield um mês depois. Esqueça o clássico diante do Everton em dezembro, ou os triunfos marcantes contra Manchester United, Tottenham, Chelsea e Arsenal.
O ponto alto da temporada para Milner aconteceu em fevereiro - em um jogo que ele nem disputou.
"Eu nunca vi ele tão feliz - nunca!" afirmou uma fonte interna do clube, se referindo à noite em que o Liverpool sub-23, comandado por Neil Critchley, derrotou o Shrewsbury em um jogo de replay na quarta etapa da FA Cup, em Anfield, com Milner assistindo atrás do banco de reservas. "Ele estava super feliz pelos garotos, por Critch e pela comissão técnica."
Foi uma grande noite para a base do Liverpool, já que um time com idade média de apenas 19 anos e 28 dias, liderados pelo capitão mais jovem na história do clube, derrotaram um time da League One para mais de 52 mil torcedores. "Eles jogaram como Liverpool," falou um contentíssimo Critchley. "Estou orgulhoso."
Foi uma campanha diferente, com circunstâncias fazendo com que vários jovens da base dos Reds ganhassem experiência no futebol profissional. Já aconteceram um número impressionante de 22 estreias no time do Liverpool nesta temporada, com 21 delas sendo de jogadores jovens. E nem entram nestas contas as contribuições de Curtis Jones, Pedro Chirivella, Ki-Jana Hoever e, é claro, do brilhante Trent Alexander-Arnold.
Assim, aparecem grandes histórias em todo lugar. Peguemos o caso de Adam Lewis, o lateral nascido em Fazakerley que estreou contra o Shrewsbury. Estes foram os primeiros 90 minutos no ano para o garoto, já que uma lesão no tornozelo o tirou da primeira metade da temporada. Ele está no Liverpool desde os cinco anos, e sonha em atuar em Anfield desde antes disso.
E o que falar de Tom Hill, que com 17 anos, nem tinha jogado pelo sub-18 antes desta temporada, mas pode dizer que já atuou nas quartas de final da Copa da Liga Inglesa? Ou Leighton Clarkson e Jake Cain, amigos inseparáveis fora de campo, que podem falar agora da noite em que juntos, dominaram o meio de campo em Anfield, com casa cheia.
Yasser Larouci era um ponta a pouco mais de um ano, mas em janeiro, como lateral, conseguiu "colocar no bolso" jogadores como Theo Walcott e Richarlison no clássico diante do Everton, enquanto que no outro lado, Neco Williams parecia ter incorporado Alexander-Arnold. Os dois, não esqueçam, ainda são garotos.
Getty ImagesHistórias e momentos maravilhosos. Em Kirkby, onde fica a base do Liverpool, a mensagem está clara, no entanto: aproveitem o momento, mas nunca deixem de pensar no futuro.
"Nós não celebramos estreias," afirmou à Goal Alex Inglethorpe, diretor das categorias de base do Liverpool. "Nós não queremos jogadores cujo melhor momento no futebol sejam seus primeiros jogos, ou vencer torneios de base. Se essas forem suas melhores lembranças, então falhamos."
"A pergunta sempre tem que ser: o que vem depois?"
E então, o que vem depois?
Este é o grande questionamento. Não existe, é claro, nenhuma garantia com jogadores jovens. Inglethorpe usa uma analogia que "alguns vão de elevador, e outros de escadas", já que para cada Alexander-Arnold, com sua ascensão meteórica, existem muitos, muitos outros, que são forçados a construírem a carreira de outra maneiras.
Para vários, este lugar será a segunda divisão. Outros vão para setores ainda mais baixos da pirâmide, enquanto alguns, inevitalmente, deixarão o esporte. Uma pesquisa conduzida pela Associação de Jogadores de Futebol Profissional (PFA), em 2017, mostrou um número de "abandonos" alarmante, com cinco a cada seis garotos que fazem parte de um elenco de base no sub-17 se aposentando antes dos 21 anos. É um esporte brutal, que requer muita resistência - mental e física - para jogá-lo.
Liverpool, é claro, sabe destes problemas. Neil Mellor, um atacante que atuou 22 jogos pelos profissionais dos Reds entre 2002 e 2005, lembra de ouvir de Steve Heighway que a meta da academia era "lhe preparar para o dia que você deixar o clube", e fica óbvio ao conversar com pessoas como Inglethorpe ou Phil Roscoe, diretor de desenvolvimento de jogadores, que uma das preocupações da equipe é não só desenvolver atletas, mas pessoas também - gente preparada para lidar com o mundo, como futebolistas ou não.
Inglethorpe já reduziu por 40% o número de jogadores em Kirkby, com duas metas em vista: primeiramente, analisar e desenvolver com mais facilidade aqueles com potencial para fazerem parte do elenco profissional, e não dar falsas esperanças para outros que não tem chance nenhuma de mostrarem seu futebol em Anfield. "Bom senso", explica.
GoalUm limite salarial de 40 mil euros - aproximadamente R$ 200 mil, em cotações atuais - também foi implementado, mesmo que aqueles que consigam chegar aos profissionais recebam uma valorização muita rápida do clube.
"É a coisa certa a se fazer," fala Inglethorpe. "Eu já vi jogadores jovens receberem salários milionários, e não lembro de muitos exemplos assim que deram certo no futuro."
"Mas eu já vi jogadores recebendo menos, tendo salários que os manteram humildes, e muitos deles deram certo."
Os benefícios deste estilo podem ser vistos no desenvolvimento de jogadores como Jones, que estreou no sub-18 com 15 anos e tem agora nove partidas no time titular, já tendo um momento incrível - que poucos terão em uma carreira - contra o Everton. Ou então Williams, um lateral nascido em Wrexham que já é considerado uma opção para os profissionais por Jurgen Klopp.
Ambos estão no clube desde o sub-9, e cresceram no "estilo Liverpool": auto-confiança, é claro, mas também humildade e ética de trabalho, nunca esquecendo de quem você é e de onde você veio. Pessoas primeiro, jogadores depois.
Educação é uma grande parte deste processo. A maioria dos jovens da base do Liverpool estudam na Rainhill High, uma escola que fica aproximadamente 16 km de Kirkby.
Dentro do clube, enquanto isso, existe um trabalho para que os atletas sejam educados em questões sociais, de saúde, domésticas e práticas. Visitas e palestras são organizadas, com os jogadores sendo encorajados a aprenderem novas habilidades sempre, como culinária ou outras línguas. Aulas existem, não só para ensinarem coisas práticas, mas também perspectiva e uma apreciação sobre seu seu lugar na sociedade.
Em fevereiro, por exemplo, um grupo de jovens visitou a praia da Normandia, uma das cinco áreas onde os Aliados desembarcaram para invadir a França - ocupada pela Alemanha nazista - em 1944. Antes disso, receberam uma palestra de Bernard Morgan, um membro da Força Aérea Real, que contou suas experiências na Segunda Guerra Mundial.
Pouco mais de uma semana antes, o sub-18, comandado por Barry Lewtas, foi visitar uma prisão em Walton, ouvindo dos presos suas experiências, suas vidas. Foi, de acordo com um membro do estafe que estava presente, uma tarde emocionante.
Essas viagens são realizadas para abrir os olhos de jogadores jovens, para fazê-los pensar sobre suas escolhas de vida e ter uma nova apreciação sobre seus privilégios. Ser um atleta requer sacríficio e dedicação, sim, mas trabalhar em uma fábrica da Jaguar em Halewood ou ser um soldado também necessita o mesmo esforço, sem receber o mesmo reconhecimento que estrelas do futebol. A equipe de Lewtas, por exemplo, foi visitar uma base do exército em Preston, como parte de sua pré-temporada no último verão. "Uma experiência importante," afirma Roscoe.
Roscoe, antes, cuidava exatamente do setor educacional da base do Liverpool. Algumas semanas antes do jogo diante do Shrewsbury, a Goal o encontrou durante uma partida sub-23.
O que ficou claro foi seu conhecimento e carinho sobre aqueles que estavam no clube e saíram. Ele falou de Sam Hart, um jovem lateral que deixou os Reds em 2017, e está no Shrewsbury, emprestado pelo Blackburn. Falou também de Jordan Lussey, ex-capitão do time sub-21, agora buscando uma oportunidade no Marine, da oitava divisão inglesa. Adam Philips, do Norwich, mas emprestado ao Morecambe, da quarta divisão, foi outro nome mencionado.
A meta do Liverpool é ter jogadores assim espalhados pela ligas europeias, e em particular, na Inglaterra. Não só gente talentosa, mas bons profissionais, pessoas encaminhadas na vida. Eles se orgulham em alguém como Conor Coady, capitão do Wolves, ou Jay Spearing, capitão do Blackburn. O desempenho de Ryan Kent no Rangers é analisado, bem como Raheem Sterling, Jordon Ibe, Jon Flanagan, Andre Wisdom, Tom Ince e Jack Robinson.
Getty Images"Só porque eles não jogam aqui, não significa que nós os esquecemos," falou Roscoe. Esta afirmação é melhor exemplificada pela presença de Tom Brewitt, do Morecambe, em Kirkby.
Brewitt deixou o Liverpool em 2017, mas agora retornou para começar o que parece ser uma carreira promissora de técnico. O garoto de 23 anos está ajudando Lewtas e o assistente Jonathan Robinson com os sub-18, e também vêm assistindo treinos dos sub-13 e sub-14. Já recebeu sua licença B da Uefa, e quer completar a licença A nos próximos 12 meses.
A história de Brewitt foi destaque na primeira edição de uma nova revista que será enviada a todos os jogadores da base do Liverpool, atuais e antigos. Seu foco não é só celebrar os sucessos dos ex-jogadores mas também oferecer ajuda e suporte, os manter conectados ao clube.
A presença de ex-jogadores em Kirkby ajuda. Rob Jones, ex-zagueiro dos Reds, passa muito tempo com Lewtas e seu sub-18, enquanto Steve McManaman pode ser visto em jogos constantemente. Heighway, também, foi convidado por Inglethorpe para retornar como um consultor para os treinadores, trabalhando em todas as categorias. Sua experiência e conhecimento, de acordo com fontes internas, tem um valor incalculável.
Terão mudanças importantes em Kirkby neste ano. A saída surpreendente de Critchley para assumir o cargo de treinador do Blackpool fará com que aconteça uma "dança das cadeiras". É esperado que o elogiado Lewtas suba para assumir o sub-23, enquanto seu assistente Robinson receba o sub-18. A continuidade é vista como chave.
Além disso, Kirkby está sendo preparado para receber a chegada de Klopp e o elenco principal, que, antes da crise do coronavírus Covid-19, estava pronto para se transferir para seu novo CT de 50 milhões de euros, fazendo com que todas as categorias de futebol do Liverpool estivessem juntas pela primeira vez.
Uma decisão importante, que, em teoria, deve ajudar a progressão de jovens jogadores para o elenco principal.
Não que o Liverpool esteja tendo problemas para fazer isso, no entanto.
O presente dos Reds está fantástico, sim, mas o futuro também parece promissor.


