Com treinamentos à todo vapor para a Copa do Mundo de 1974, já pensando em adversários como o Brasil, a Alemanha Ocidental e a Itália, a seleção argentina não tinha porque temer um amistoso organizado com a seleção regional da cidade de Rosario. Mas eles tinham esquecido de um atleta em específico: "Trinche" Carlovich, lenda das divisões inferiores e pesadelo da albiceleste.
Nesta sexta-feira (8), Carlovich faleceu com 74 anos, vítima de um roubo violento, dois dias antes, no oeste de Rosario. Os ladrões acertaram sua cabeça para roubar a bicicleta com que estava andando, causando um derrame, que o deixou em coma.
A notícia causou um luto nacional do mundo do futebol argentino, causando todos aqueles sortudos o suficiente para terem o visto jogar começarem a recontar histórias da lenda em seus graneds momentos. De todos esse contos, sua dominação sobre a seleção argentina na Copa do Mundo talvez seja a mais famosa.
Carlovich estava a dois dias de completar seu 28º aniversário em 17 de abril de 1974, quando a seleção chegou em Rosario. Nativo da cidade, onde outros grandes nomes como Lionel Messi e Marcelo Bielsa também nasceram, cresceu na base do Rosario Central mas jogou apenas uma partidas nos profissionais do clube.
Foi no Central Córdoba - da cidade de Rosario, não o que está atualmente na primeira divisão - que ele teve sua oportunidade, marcando duas vezes em sua estreia pelo clube e levando os Charrúas a subirem para a Primera B - terceira divisão argentina - pela primeira vez em seis anos. Terminou sua carreira com mais de 200 jogos pela equipe, com quatro passagens diferentes e 28 gols oficiais.
Até agora, pode até aparentar que Carlovich tenha sido outro jogador a brilhar nas divisões inferiores e nunca conseguir se estabelecer dentre os grandes. De acordo com aqueles que viram 'Trinche' jogar, no entanto, isto não podia estar mais errado. "É o jogador mais maravilhoso que eu já vi", afirmou José Pekerman, colocando a lenda na sua seleção argentina de todos os tempos.
Jorge Valdano, campeão mundial em 1986, jornalista e comentarista de futebol, em entrevista ao Movistar+, declarou: "É uma lenda em Rosario. Um símbolo de um futebol romântico que não existe mais." Contemporâneos descrevem Carlovich como uma mistura de Fernando Redondo e Juan Román Riquelme, capaz de mudar uma partida com um passe ou um lançamento.
Lendas dizem que o próprio Bielsa tentava imitar 'Trinche' em seu estilo de jogo, e depois de não conseguir brilhar dentro de campo, assistia todas as suas partidas na terceira e quarta divisão para lhe imitar. No entanto, foi Diego Maradona o seu maior fã: perguntado por um repórter de Rosario, quando foi contratado pelo Newell's, em 1993, como se sentia sendo o melhor jogador do mundo, o craque respondeu "o melhor jogador do mundo já jogou em Rosario e seu nome era Carlovich."
Ignasi Torné GualdoA inclusão do atleta no amistoso diante da Albiceleste aconteceu de última hora: para evitar ser criticado por favorecer um dos arquirrivais Rosario Central e Newell's Old Boys, os treinadores Juan Carlos Montes e Carlos Griguol aceitaram levar apenas cinco jogadores de cada uma das equipes. O 11º viria do modesto Central Córdoba.
"Griguol me disse que seria bom levar um jogador do Central Córdoba. Eu falei para ele: 'que tal Carlovich?" relembrou Montes para a DeporTV. A equipe tinha muito talento: o Rosario Central tinha acabado de ser campeão argentino no ano anterior, sob a liderança de um jovem prodígio chamado Mario Kempes. No entanto, contra a seleção argentina, as expectativas eram de que a esquadra seria apenas um "treino de luxo."
"Trinche" tinha outras ideias. Numa atuação histórica, o atleta usou todos os seus trques - incluindo seu drible famoso, o 'rolinho duplo' - dominou a partida e a seleção de Rosario foi para o intervalo vencendo por 2 a 0. "Eles pediam para nós tirarmos o pé do acelerador." relembra Carlos Aimar, companheiro de Carlovich no meio de campo.
A estrela, substituída no intervalo, até hoje é motivo de polêmica: muitos dizem que o atleta teria saído para não envergonhar ainda mais a seleção argentina. No final, o duelo terminou em uma vitória por 3 a 1 para a esquadra de Rosario, com gol de Kempes no segundo tempo.
Ignasi Torné GualdoCarlovich só não foi maior na carreira por um fator: sua teimosia em levar o futebol a sério.
Contratado pelo Colón para jogar a primeira divisão, ficou apenas três jogos no clube, saindo lesionado em todos. Assim, retornou de novo para o modesto Central Córdoba, sem ter brilhado na elite do futebol argentino.
Depois, jogando em Mendoza, no Independiente Rivadavia (clube de outra lenda do futebol argentino, Víctor Legrotaglie), forçou para receber um cartão vermelho para não perder o ônibus que o levaria de volta para Rosario.
Sua passagem no clube teve um momento marcante, no entanto: "tapando buraco" no Andes Talleres, foi o pesadelo de Franco Baresi, ainda com 19 anos. O Milan, numa excursão na América do Sul em 1979, saiu derrotado por 3 a 2 para o minúsculo time de Mendoza.
Em 1976 recebeu uma oportunidade de Cesar Luis Menotti para defender a Albiceleste, mas recusou: "Era maravilhoso vê-lo jogar, ele tinha muita habilidade. Eu o convoquei para seleção, mas ele não apareceu. Não lembro se disse que tinha ido pescar ou estava numa ilha: sua desculpa foi que não conseguiu voltar pois o nível do mar estava muito alto." relembrou o ex-treinador.

“Eu sempre joguei da mesma forma, com a mesma intensidade," a própria lenda explicou ao El Grafico. "Talvez se eu tivesse ido à França ou ao New York Cosmos, duas chances que eu tive na época, teria mudado minha vida. Para mim, jogar no Central Córdoba era como jogar no Real Madrid."
"O que significa 'mudar minha vida'? Eu nunca tive nenhuma ambição na carreira. Tudo eu que queria era ficar perto de casa, perto dos meus pais, perto de El Vasco Artola, um de meus melhores amigos que jogou junto comigo no Sporting Bigand, quando criança... Sou um pessoa solitária. Quando joguei em Central Córdoba, eu me trocava sozinho no banheiro ao invés do vestiário. Eu gosto de paz e silêncio, não é questão de atitude."
Carlovich permaneceu sendo uma figura história em Rosario, dando autógrafos e posando para fotos com fãs jovens que certamente nunca o viram jogar no Central Córdoba, onde se aposentou em 1986. Seu talento brilhou mais forte longe das câmeras e da exposição do futebol moderno, mas seu a figura mística que representa ainda permanece viva na sua cidade natal, com gerações mais jovens ouvindo de seus avós histórias de seus gols, "rolinhos" e feitos.
Pouco antes de sua morte, a lenda finalmente conheceu seu ídolo, Maradona, que lhe deu uma camisa do Gimnasia. "Ele começou a falar no meu ouvido e não parava," contou a repórteres. "Autografou sua camisa para mim e escrveu, 'Trinche, você foi melhor do que eu.'"
"Tudo o que eu pude responder foi: 'Diego, agora posso deixar esse mundo em paz, você foi o maior de todos que eu vi'." Carlovich não poderia imaginar quanto essas palavras se tornariam tristes e proféticas. Sua morte rouba Rosario e o futebol argentino de um das suas figuras mais únicas: a prova viva de que, longe da modernidade do esporte, existiram - e ainda existem - figuras cujo maior prêmio na carreira foi ter a felicidade de empurrar a bola para as redes.
Rosario pode ter dado a luz para Bielsa e Messi, além de ter tido Maradona por alguns momentos, mas existe lugar por ídolo no seu panteão de heróis. E se o próprio Diego acredita que 'Trinche' foi o melhor de todos, quem somos nós para discordar?