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Naomi OsakaGetty Images

Decisão de estrela do tênis mostra como esportes lidam mal com saúde mental - e o futebol está nessa

Quando Naomi Osaka deixou o French Open após ser multada por não falar com a imprensa - a tenista revelou que sofria com ansiedade e stress ao falar com a imprensa -, foi criticada por repórteres e outras estrelas do esporte.

Billie Jean King relembrou Osaka de sua "responsabilidade" com a imprensa, enquanto um jornalista a chamou de "princesa" - com muitos recordando a importância das entrevistas pós-jogo.

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A escolha de Osaka foi feita para preservar sua saúde mental, mas o lado emocional foi praticamente deixado de lado no debate sobre o assunto.

Quando você é um atleta, quem se importa com sua saúde mental? Esse é um problema que também vem afetando o futebol já faz muito tempo.

Quando Stan Collymore se internou no hopital Roehampton Priory por depressão, em 1999, tudo o que seu treinador falou foi: "Como alguém ganhando tanto dinheiro por semana pode estar deprimido?"

É fácil esquecer que os atletas que nós idolizamos são humanos, com problemas reais como nós. De acordo com uma pesquisa de 2016, estudos científicos sobre problemas de saúde mental no esporte são raros. O assunto é pouco discutido e investigado.

Isso pode ser relacionado a uma espécie de estigma sobre a importância de valorizar saúde mental e emocional no esporte de elite - como nós vimos no furor sobre a decisão de Osaka por abandonar um torneio para se cuidar.

Apenas recentemente esse assunto começou a ser discutido no futebol, com a Federação de Futebol de Inglatera, a FA, criando a iniciativa Heads Up - liderados pelo Duque e pela Duquesa de Cambridge - em 2019.

Seu lançamento veio um ano após a Associação de Jogadores Profissionais descobrir que mais de 50% dos ex-jogadores de futebol tinham preocupações sobre saúde mental após a aposentadoria.

E como nós vimos com Osaka, no futebol, as grandes estrelas não são imunes.

Andres Iniesta Spain GFXGetty Images

Andrés Iniesta revelou que sofreu com depressão antes da Copa do Mundo de 2010 após a morte de seus amigo Dani Jarque. Em 2018, Michael Carrick admitiu que viveu episódios depressivos por dois anos após a derrota do Manchester United na final da Liga dos Campeões da Uefa em 2009. No mesmo ano, Danny Rose revelou também sofrer da doença.

E temos também os casos trágicos de Robert Enke e Gary Speed, ambos tendo cometido suicídio após serem diagnosticados com depressão.

"Existe uma certa relutância para reconhecer o problema no esporte," conta a psicóloga do esporte e professora na Universidade Brunel de Londres, Misia Gervis, para a Goal.

"Nós continuamos que o jogador é o problema e culpamos o indivíduo. Não são só problemas pessoais: o que no mundo contribuiu para que eles tenham tais problemas?"

Gervis recebeu a tarefa da FA, em 2002, de trabalhar como consultora para desenvolver cursos de psicologia do esporte para treinadores. Antes disso, não havia nada sobre o assunto em nenhum curso educacional.

"Nós colocamos os jogadores de futebol como superheróis. É representativos que muitos de nós não conseguimos aceitar suas humanidades, fragilidades. Nós queremos alguém para venerar, como um herói," fala Gervis.

"Eu trabalhei com um treinador que dizia ser como viver em duas realidades. É simples: 'Sou Deus se vencer, sou o demônio se perder'."

Para Michael Caulfield, psicólogo do esporte que já trabalhou tanto com times da Premier League quanto da Championship, é crucial para os atletas o ver como alguém completamente separado das atividades do dia a dia - eles podem falar o que quiser e não sofrerão as consequências dentro do clube.

"Eu nunca fiz parte de nenhum consulta a um treinador sobre a presença de certo jogador ou não na escalação," conta Caulfield para a Goal. "Eu nem entro na sala dos treinadores. Eu quero que os jogadores saibam que não estou envolvido nisso."

Caulfield cita o fracasso como a luta mais complicada que um jogador de futebol pode travar. No futebol, onde seu valor está diretamente correlato a sua performance, muita pressão é colocada no lado individual. Eles podem sentir a necessidade de se provar, constantemente, em detrimento de sua saúde mental.

"O medo é desapontar as pessoas," Caulfield explica. "O medo de serem julgados. O medo de não serem bons o suficiente. Isso afetou a seleção inglesa por muitos anos. E muitos jogadores que atuaram na seleção me contaram que tinham mais medo da reação da torcida do que dos adversários na Copa do Mundo."

De acordo com Gervis, os efeitos psicológicos da uma lesão a longo prazo podem ser devastadoras para um atleta. Quando você dedica sua vida inteira para ter uma boa performance e se contunde, o caminho da recuperação é longo, difícil e desolador.

"A saúde mental inquestionavelmente impacta no nível da performance do atleta," fala Gervis. "Eles caminham juntos. Todos os jogadores que se machucam por muito tempo precisam ser acompanhados psicologicamente."

Se um jogador fica de fora, lesionado, eles ficam sozinhos, isolados, separados do resto do time psicologicamente e mentalmente. Esse sentimento de separação é complicado para um atleta de alto nível, e a sua própria identidade é desafiada.

"Quando você está deitado se recuperando, fazendo fisioterapia, mas ouve 24 jogadores treinando do outro lado do CT, é algo muito difícil," acrescenta Caulfield.

"Até a palavra 'reabilitação' é negativa, você aparenta ser um viciado."

Na pesquisa de Gervis, a maioria dos times na primeira divisão inglesa não tem um profissional da psicologia do esporte na sala quando lida com lesões de jogadores.

"Você tem dez analistas de vídeo, dez fisioterapeutas e um psicólogo freelancer," Gervis brinca. "Isso deixa tudo muito claro para mim, onde estão suas prioridades. Os clubes normalmente nem contratam psicólogos em tempo integral. Se eu trabalho a metade do tempo, apresento metade dos resultados."

Misia Gervis quote GFXGoal

No QPR, uma das estipulações do trabalho de Gervis aconteceu na base, onde todos os atletas lesionados tinham conversas individuais com o time de psicólogos. Isso, ele conta, não deveria ser a exceção. Deveria ser a regra, cada vez mais.

"Jogadores lesionados vão te contar que a parte mais difícil é o lado mental," Gervis continua. "O lado físico é mais fácil, eles recebem a ajuda de profissional muito competentes. A ênfase sempre está no corpo. Mas e a mente, as emoções, os sentimentos?"

Mesmo os termos "propenso a lesões" ou "de vidro", popularizados pela mídia, machucam atletas. A constante classificação de quão provável é que certo jogador se lesione é prejudicial a sua saúde mental, tendo a capacidade de afetar sua recuperação - tanto mentalmente como fisicamente.

"O medo de se machucar novamente aparece em quase qualquer jogador que esteja voltando de lesão," Gervis explica. "Isso significa que você desaprende a utilizar os músculos. Você vai se mexer diferentemente, evitar alguns comportamentos. Você se pergunta: 'qual o pior que pode acontecer', e se machuca novamente. Se você não lidar com o lado psicológico, cria um terreno fértil para novas contusões."

Fisioterapeutas não são psicólogos treinados, e lidar com a saúde mental não são sua especialidade - ainda assim, a maioria dos jogadores se consulta apenas com fisioterapeutas. É a cultura de como as coisas são feitas.

Está cada vez mais comum para atletas revelarem suas batalhas contra a depressão após a aposentadoria, já que não poderiam lidar com elas enquanto ainda atuavam dentro de campo.

Mas a aposentadoria serve um papel importantíssimo na moral de um jogador, já que do nada, seu valor como uma pessoa - estar dentro de campo - não existe mais.

Para outros ex-jogadores, tal transição pode ser terapêutica. Steven Gerrard nunca venceu a Premier League com o Liverpool. Mesmo sendo querido por seu tempo como capitão do clube, rivais sempre vão lembrar de seu "escorregão" contra o Chelsea, em 2013-14, que pode ter encerrado as chances de título dos Reds.

Eventos assim podem traumatizar um jogador pelo resto da vida. Mas Caulfield utiliza a perspectiva como método positivo para alcançar os jogadores. Gerrard poderia ficar anos pensando o que aconteceria se não tivesse escorregado, mas ao invés disso, conseguiu ter sucesso como treinador do Rangers.

Steven Gerrard Liverpool GFXGetty Images

“Sua resiliência é tão grande como jogador e agora como treinador que ele recusa a se definir por um incidente," conta Caulfield. "Tanto os seus triunfos e seus fracassos vão estar com ele pelo resto da vida. E quem pode dizer que ele não irá conquistar o título um dia como técnico do Liverpool?"

Osaka, enquanto isso, afirmou estar sofrendo com a depressão desde o US Open, em 2018, sua primeira vitória em um Grand Slam, mas em um cenário incrivelmente pesado com as reações da torcida em Nova Iorque após a derrota da favorita Serena Williams.

Caulfield também trabalhou com Gareth Southgate, e cita o atual técnico da Inglaterra como outro exemplo de ex-atleta que recusa a se definir pelos seus incidentes como jogador.

"Southgate poderia se definir por aquele pênalti perdido contra a Alemanha, mas ele não faz isso, pois tanto ele como Gerrard querem escrever outro capítulo de suas histórias. Eu sugiro aos atletas que pensem ao longo prazo, mas isso necessita de tempo e confiança. Eles querem realmente continuar lembrando dessas coisas horríveis, ou que terão outras oportunidades na vida? Você precisa utilizar a perspectiva no tempo certo."

Com jogadores de futebol masculinos em particular, também existe o problema de procurar ajuda e serem vistos como "frágeis". "Como psicólogo do esporte, você precisa se perguntar: como lidar com uma culutra onde a masculinidade tóxica está mais viva do que nunca?" Gervis explica.

"Em um mundo inteiramente masculino, alguém estará agindo com raiva. Pessoas com raiva ou machucadas sempre estão vulneráveis. Você precisa saber como lidar com elas. Por isso, precisa de psicólogos."

Assim, mesmo que trabalho substancial ainda precise ser feito para melhorar a cobertura de saúde mental para jogadores de futebol, Gervis segue otimista. "Eu preciso ser", explica. "Se eu não for, qual é o ponto? Eu posso só ir pra casa e desistir."

E considerando quão ricos são clubes de futebol profissional, é um fato surpreendente que Gervis, em sua pesquisa, descobriu que boa parte não carregam problemas de saúde mental como parte de seus planos de saúde.

Como uma etapa preliminar, a PFA deve garantir que tais problemas sejam coberto para todos os jogadores: simples mudanças estruturais podem fazer uma grande diferença.

"Imagine viver em um mundo onde você faz seu trabalho e dez mil pessoas estão te xingando, falando que você é um pedaço de m****. Você ficaria destruído," Gervis explica.

"É um mundo difícil para viver. As redes sociais fazem tudo ser mil vezes pior. Como torcedores, as vezes nos sentimos no direito de falar coisas que, em certo nível, trarão problemas."

E as pessoas ainda se perguntam por que Osaka tomou sua escolha. O que nós devemos nos perguntar, por outro lado, é porque demorou tanto até um atleta defender a sua saúde mental - e por que nós fomos tão rápidos em a vilanizar por tomar tal etapa vital.

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