Como Richarlison venceu problemas pessoais, recuperou vaga no time titular do Tottenham e voltou a ser um dos melhores atacantes da Premier League

Quatro dias depois da goleada sobre a Bolívia, o Brasil viajou a Lima para completar o primeiro round de partidas pelas Eliminatórias. A vitória veio - mas com muito suor, vale dizer, graças a um gol de cabeça de Marquinhos, na reta finalíssima da partida -, e novamente com Richarlison passando em branco, apesar de ter tido um gol anulado por impedimento.

"Passei por um momento turbulento nesses últimos cinco meses fora de campo. Agora as coisas já estão certas dentro de casa. Pessoas que só estavam de olho no meu dinheiro saíram de perto de mim. Agora as coisas vão começar a fluir, tenho certeza que vou pegar uma sequência boa no Tottenham e fazer as coisas acontecerem novamente", contou o atacante.

À época, reportagens na Inglaterra apontaram para um possível desentendimento entre Richarlison e seu (agora antigo) empresário, Renato Velasco, que o agenciava desde o início da carreira.

“Vou voltar para a Inglaterra, buscar ajuda psicológica, de um psicólogo, para trabalhar a mente. É isso, voltar mais forte”, seguiu. “Dentro de campo, sou um cara feliz, de equipe. Tento ajudar o máximo possível. Às vezes, as coisas não acontecem do jeito que a gente quer. Creio que essa parte é um pouco do lado extracampo que acabou me atrapalhando. Mesmo você querendo fazer as coisas certo, acaba dando errado. Vou continuar focado no clube. A tempestade já passou”.

E esse ponto baixo veio 10 meses depois de ser titular na Copa do Mundo do Qatar, a sua primeira com a camisa da seleção brasileira - e com a qual marcou, inclusive, o gol mais bonito da competição.

Dentro do Tottenham Stadium, o brasileiro nunca teve boa sequência com Antonio Conte, que comandou os Spurs entre novembro de 2021 e março do ano passado. Com o italiano, Richarlison foi titular em apenas 12 oportunidades. Atuou quase sempre fora da posição que sua camisa 9 sugere - no centro da área -, sendo bem mais utilizado caindo pela direita.

É claro que o ‘fator Harry Kane’ era uma constante até então - vida longa ao homem capaz de substituí-lo. Mas, após ser vendido por 100 milhões de euros (mais eventuais valores em bônus) ao Bayern de Munique, uma lacuna gigantesca ficou clara no centro de ataque da equipe, e existia esperanças que o ex-Fluminense e América-MG fosse o principal candidato para, agora em um Tottenham sob a ‘nova gerência’ de Ange Postecoglou, assumir o papel de Homem Gol.

Logo depois da Data Fifa de setembro de 2023, Richarlison teve a ajuda que buscava no Tottenham. E logo em seu retorno ao clube, pouco mais de uma semana depois de ser visto aos prantos no banco de reservas da seleção brasileira durante uma goleada, o Pombo foi herói em Londres, marcando o gol de uma virada impressionante dos Spurs em cima do Sheffield United, com os dois gols da vitória por 2 a 1 no Tottenham Hotspur Stadium saindo aos 53 e 55 minutos do 2° tempo.

Qualquer roteirista sensato preveria dias melhores para o brasileiro - mas não foi bem assim que tudo se desenrolou. Apesar da boa fase dos Spurs ter durado, com direito a cinco jogos subsequentes de invencibilidade - sendo quatro vitórias neste período - que os alçaram ao topo da tabela, o dia 6 de novembro ficou marcado para o brasileiro. Na trágica derrota em casa e de virada por 4 a 1 para o Chelsea - destacada pelas expulsões de Cristian Romero e Destiny Udogie -, o camisa 9 sequer foi a campo, permanecendo todos os 90 minutos no banco de reservas.

Após a partida, com lágrimas nos olhos, contou à ESPN Brasil que passaria por uma cirurgia para corrigir um incômodo de longa data no púbis.

"Olha, os últimos meses não foram fáceis pra mim. Venho sofrendo também de saúde. Acho que já conversei com os doutores e em breve farei uma cirurgia no púbis. Venho oito meses sofrendo, guerreando, olhando pra seleção, pra clube e não olhava pra mim. Acho que chegou o momento de descansar, dar uma pausa”, anunciou.

O atacante sabia que o tempo ausente de nada ajudaria na reconquista não só de uma vaga no time titular, mas do bom futebol.

Só que ele não podia estar mais errado.

Desde seu retorno da cirurgia, em dezembro, Richarlison é um dos jogadores da Premier League com mais gols anotados no período. E já aparece em destaque na tabela de artilheiros do Campeonato Inglês. Uma evolução para lá de considerável, em contraste com apenas um gol registrado nos 27 jogos anteriores na primeira divisão nacional. Com Son Heung-min, que vinha sendo utilizado por Postecogou no centro do ataque, convocado pela Coréia do Sul para a disputa da Copa da Ásia, o brasileiro se colocou à disposição como centroavante.

Antes da operação, o técnico australiano chegou a dizer que Richarlison “estava tendo bastante dificuldade, até mesmo nos treinos". O tom recente, contudo, foi outro: “Richy está saudável agora. Acho que esta é a sua melhor posição, pelo meio”.

E os números que o digam - mas já chegamos neles. Antes, é importante ressaltar algumas partidas recentes essenciais para essa ‘virada de chave’.

A primeira delas foi justamente a do seu retorno depois da operação, no dia 10 de dezembro - vitória por 4 a 1 sobre o Newcastle. O Pombo guardou dois neste embate (seu primeiro gol pelo Tottenham com o pé, aliás. Sim, todos os outros haviam sido de cabeça), mas, talvez até mais importante, atuando muito bem como referência no ataque. Pois é, “talvez até mais importante”.

Isso porque, embora a abordagem de Conte no dia a dia não fosse tão positiva, Postecoglou tem tido uma determinação com o atacante que passa mais pelo seu auxílio no coletivo do que necessariamente pela quantidade de gols - apesar de muito bem-vinda, claro.

O próprio técnico falou sobre, em entrevista após a eliminação precoce na Carabao Cup, diante do Fulham, na qual Richarlison balançou as redes. Apesar do tento, o australiano afirmou que o atacante "já jogou melhor para nós em outros jogos". Recentemente, após a partida contra o Brentford, outros elogios foram costurados - e de novo valorizando outros atributos: “Suas transições e capacidade de cadenciar o jogo só estão melhorando", festejou. "Eu amo isso. Amo quando os jogadores querem - e conseguem - evoluir".

A mensagem fica, assim, clara: não só de gols vive um centroavante. Pelo menos não na equipe de Postecoglou.

Ainda que balançar as redes não seja só o que importa, balançar as redes importa. E se a capacidade de Richarlison de converter chances já chegou a ser um problema anteriormente, não é o que as estatísticas atuais nos dizem.

Nos primeiros 12 jogos da temporada - antes da cirurgia -, o camisa 9 marcou um gol. O valor de gols esperados (xG - expected goals, em inglês) neste mesmo período, contudo, foi de 3,03 - ou seja, enquanto o brasileiro marcou apenas um, a estatística diz que, em média, os outros atletas da Premier League teriam marcado cerca de três se tivessem as mesmas oportunidades.

Isto, contudo, mudou nesta nova fase. Richarlison deixou de desperdiçar gols mais fáceis e passou a marcar até aqueles teoricamente mais inesperados. Com a temporada atual ainda está longe do fim, o brasileiro terá tempo para quebrar o seu recorde pessoal de gols marcados em uma única campanha: em 2019/20 foram 15 gols pelo Everton (mesmo número de tentos que anotou pelo Fluminense em 2017).

E se engana quem pensa que o técnico não tem o dedo nisso. Ao longo das últimas três temporadas, conforme levantamento do The Athletic, 80% dos gols anotados no Inglês vieram após o jogador encostar até duas vezes na bola - ou seja, nos outros 20%, o artilheiro encostou três vezes ou mais antes de arrematar para as redes.

Richarlison não tem mais titubeado. Se estiver em posição de arremate, dá o mínimo de toques possível na esfera antes de arrematar. É o estilo de jogo de Big Ange, de cruzamentos curtos e bolas na referência, colocando o brasileiro em posições mais confortáveis, como comprovado matematicamente, para marcar na Premier League.

Na verdade, levando tudo isso em consideração, até que pouco surpreende tamanha evolução…

A quantidade de gols e competência geral de Richarlison têm sido debate há algum tempo. Se a discussão anteriormente era do porquê o atacante de 70 milhões de euros não rendia o esperado, o tom da conversa agora mudou.

Hoje, Richarlison voltou a ser não apenas um dos melhores jogadores do Tottenham, mas um dos melhores jogadores da Premier League. Claro, seguir com essa média quase absurda de gols marcados e até mesmo de xG é quase impossível, mas manter-se no alto nível certamente já é seu próximo grande desafio. Mas, com base no que vimos até aqui, não há porquê não crer nisso.

Lá em setembro, o atacante tinha certeza de que as coisas iam "começar a fluir". E não é que tudo está fluindo mesmo?