+18 | Conteúdo Comercial | Aplicam-se termos e condições | Jogue com responsabilidade | Princípios editoriais
Guardiola Donnarumma Ederson GFXGetty/GOAL

Pep Guardiola está traindo seus princípios com a contratação de Gianluigi Donnarumma - mas o Manchester City precisava fazer o simples após o declínio de Ederson

Victor Valdés jamais vai esquecer a primeira conversa que teve com Pep Guardiola. Ele já era goleiro do Barcelona há anos, tinha conquistado uma Champions League e alguns títulos de LaLiga, mas o então novo treinador, um estreante no comando, desafiou de imediato tudo o que Valdés achava que sabia sobre futebol.

No documentário Take the ball, pass the ball, o lendário goleiro contou: “Ele [Guardiola] chegou com um quadro tático e colocou dois ímãs pequenos de cada lado da área, logo fora da grande área. E disse: ‘Você sabe quem são esses dois? São os seus zagueiros’. Eu não tinha ideia do que ele estava falando; parecia que ele estava falando chinês. E ele completou: ‘Quando você tiver a bola, é aqui que quero que eles estejam. Você vai passar para eles, e a partir daqui é que vamos construir o jogo’. Eu pensei que ele era maluco.”

Valdés colocou em prática a ideia de Guardiola de sair jogando desde o gol. Mesmo quando isso lhe custou falhas contra o Real Madrid, ele manteve o estilo, recebendo elogios de Xavi Hernández por “não esquecer nossa filosofia”. Suas limitações na defesa de chutes impediram que tomasse o posto de Iker Casillas como o número 1 da Espanha, mas ele foi fundamental para que Guardiola conquistasse o mundo com o Barcelona. E quando o técnico foi para o Bayern de Munique, levou a mesma ideia para Manuel Neuer, que além de ter um ótimo jogo com os pés, era um goleiro muito mais seguro que Valdés.

Quando Guardiola chegou ao Manchester City em 2016, estava tão convencido da necessidade de um goleiro que soubesse jogar com os pés que abriu mão da lenda do clube e ídolo da torcida Joe Hart. A primeira aposta, Claudio Bravo, foi um desastre, mas depois veio a escolha certeira com Ederson.

O brasileiro está de saída do Etihad Stadium após oito temporadas, seis títulos da Premier League e sendo o goleiro com mais assistências da história da Premier League, mas a decisão de Guardiola de substituí-lo por Gianluigi Donnarumma surpreendeu o mundo do futebol. Muitos se perguntam se o treinador não estaria abandonando seus próprios princípios.

📱Veja a GOAL direto no Whatsapp, de graça! 🟢
  • Manchester City v Tottenham Hotspur - Premier LeagueGetty Images Sport

    Constantemente evoluindo

    Guardiola revolucionou o futebol ao fazer o Barcelona jogar de uma forma que não se via havia há muito tempo, desde quando ele mesmo era meio-campista no “Dream Team” de Johan Cruyff. Depois, manteve esse mesmo modelo no Bayern e no City, mudando rapidamente a forma como o futebol era visto tanto na Alemanha quanto na Inglaterra. Mas, ao contrário do que muitos pensam, Guardiola tem constantemente evoluído seu estilo de jogo.

    Ele passou de laterais ofensivos como Dani Alves e João Cancelo para escalar uma linha defensiva inteira formada por zagueiros no City. Saiu de uma fase sem centroavante de ofício para depois montar a equipe em torno de Erling Haaland, o atacante mais letal do mundo, mas com limitações no jogo de construção. Também modificou o papel dos goleiros: Ederson, por exemplo, mescla passes curtos com lançamentos longos ao campo adversário, acumulando oito assistências pelo City, sendo quatro apenas na última temporada.

    Guardiola explicou seus métodos à ESPN Brasil no ano passado: “É porque, do contrário, eu me entedio. Fazer sempre a mesma coisa por oito anos seria muito chato. Em segundo lugar, quando você faz algo que dá certo, eles [os rivais] observam e criam um antídoto. Se você fecha muito por dentro, eles fecham também. Se abrimos muito o campo, eles abrem ainda mais. Tudo o que fazemos e eles respondem, temos que responder de novo. O terceiro motivo são os jogadores que temos, suas qualidades específicas e como melhor se adaptam à maneira como queremos jogar.”

  • Publicidade
  • gianluigi donnarumma psg getty

    Perfil diferente

    Entretanto, apostar em Donnarumma soa como uma evolução além da conta para Guardiola, considerando as exigências que ele costuma ter com goleiros. Há apenas duas semanas, o treinador disse ao podcast Men in Blazers: “É difícil para mim encontrar um goleiro que não seja corajoso com os pés. É muito difícil. Não estou dizendo que seja como o Ederson, que tem a habilidade incrível de colocar a bola a 60 metros no pé de um companheiro. Ortega também tem essa capacidade. Mas todos precisam ter um mínimo para jogar.”

    Donnarumma, porém, não é um goleiro que normalmente seria descrito como corajoso com os pés, nem se encaixa no perfil que Guardiola costuma buscar. Tanto que o Paris Saint-Germain o dispensou nesta janela a pedido do técnico Luis Enrique, mesmo depois de o italiano ajudar a conquistar todos os títulos da temporada, incluindo a primeira Champions League do clube, justamente por enfrentar dificuldades com a bola nos pés.

    O camisa 1 da Itália foi decisivo para levar o PSG à final em Munique: defendeu dois pênaltis na disputa contra o Liverpool nas oitavas, evitou a reação do Aston Villa nas quartas e fez oito defesas na semifinal contra o Arsenal, após a qual Vitinha o descreveu como o “MVP”.

    Ainda assim, o clube decidiu contratar o jovem Lucas Chevalier e deixou Donnarumma fora dos treinos e do elenco da Supercopa da UEFA para forçar sua saída. A demora na renovação por divergências salariais pode ter influenciado, mas Luis Enrique assumiu a decisão, afirmando que buscava “um perfil de goleiro diferente”.

  • Paris Saint-Germain v AC Milan: Group F - UEFA Champions League 2023/24Getty Images Sport

    Não tão Barça assim

    Chevalier, de fato, é muito mais ousado com a bola do que Donnarumma. Na temporada passada pelo Lille, completou bem mais passes longos (158 contra 62) e lançamentos (61 contra 16) – definidos pela Opta como “bolas altas em profundidade ou em área para disputa” – que o goleiro que substituiu no Parque dos Príncipes. Também superou o italiano em números tradicionais de goleiro: fez sete jogos a mais sem sofrer gols na Ligue 1 (11 contra 4) e teve melhor percentual de defesas (71,65% contra 66,22%), mesmo com o Lille terminando em quinto lugar enquanto o PSG disparava rumo ao título.

    O fato de Luis Enrique querer se desfazer de Donnarumma ao mesmo tempo em que Guardiola desejava contratá-lo é revelador. Ambos jogaram e treinaram o Barcelona, e quando comandava o time catalão, Luis Enrique se recusou a vender Marc-André ter Stegen ao City, liberando Claudio Bravo para o Etihad justamente para manter o alemão como titular.

    Enquanto esteve no Camp Nou, Luis Enrique chegou a ser acusado de se afastar do estilo tiki-taka aperfeiçoado por Guardiola, mas quando seu PSG enfrentou o Barça de Xavi em 2024, ele ironizou dizendo que sua equipe jogava muito mais como o Barcelona de antigamente do que o time atual. E ao abrir mão de Donnarumma por suas limitações com os pés, parece ser até mais rigoroso na aplicação do estilo do Barça do que o próprio treinador que o resgatou e popularizou.

  • Paris Saint-Germain v FC Bayern München: Quarter-final - FIFA Club World Cup 2025Getty Images Sport

    Mudança de hábitos

    Isso não significa que Donnarumma seja particularmente ruim com os pés em comparação aos outros. Sua precisão nos passes foi de 85,4% na Ligue 1 na última temporada, abaixo dos 86,3% de Ederson, mas superior à dos outros dois goleiros do City: Ortega (79,4%) e James Trafford (70%). Ele também ficou em terceiro entre os quatro no quesito percentual de defesas, com 66,2%, atrás de Trafford, que liderou com impressionantes 84,5%, ainda que na Segunda Divisão Inglesa.

    A relutância de Donnarumma em sair jogando de trás pode ter origem em um dos piores erros de sua carreira, quando foi desarmado por Karim Benzema dentro da própria pequena área, em uma virada espetacular do Real Madrid que eliminou o PSG da Champions League em 2022. Donnarumma também ficou marcado por entregar um gol na Ligue 1 ao passar a bola diretamente para Takumi Minamino, do Monaco, além de cometer dois erros graves com os pés no Milan: um ao aceitar um recuo de Gabriel Paletta que terminou dentro do próprio gol, e outro ao perder a bola para a Sampdoria enquanto driblava dentro da área.

    Essas falhas contribuíram para que Donnarumma adotasse uma postura mais conservadora, atuando mais próximo da linha do gol do que muitos goleiros de elite. Isso, porém, o consolidou como um dos melhores defensores de chutes do futebol, ajudado por sua altura de 1,96m.

    “Ele é enorme, mas sua noção de posicionamento dentro da área é excelente”, disse o ex-goleiro da Inglaterra, Paul Robinson, à BBC. “Isso se deve à percepção de profundidade que ele tem ao ler um passe em profundidade e ao entendimento de onde está sua linha. Muitos goleiros se precipitam e saem do gol para tentar fechar o ângulo, acreditando que estão em melhor posição mais afastados da baliza. Eu mesmo fiz isso algumas vezes e, quando percebia, a bola já tinha passado. O que Donnarumma faz, de forma muito inteligente, é permanecer mais perto da linha, talvez dois ou três metros à frente. Por causa do tamanho dele, sabe que consegue cobrir a maior parte do gol mesmo assim.”

  • FBL-EURO-2020-2021-MATCH51-ITA-ENGAFP

    Um monstro em disputas de pênaltis

    Luis Enrique exigiu de Donnarumma uma postura mais agressiva, o que o levou a cometer mais erros. De fato, o treinador assumiu a culpa quando o goleiro foi expulso contra o Le Havre, há duas temporadas, ao sair da área para tentar afastar a bola, mas acabar acertando o rosto do adversário Josue Casimir.

    Seu auge ocorreu na Eurocopa 2020, defendendo uma Itália treinada por Roberto Mancini e protegida pelos experientes zagueiros Giorgio Chiellini e Leonardo Bonucci. Em outras palavras, não era uma equipe preocupada em sair jogando com coragem desde a defesa. Donnarumma brilhou nas disputas de pênaltis contra a Espanha, na semifinal, e contra a Inglaterra, na decisão, tornando-se o primeiro e único goleiro eleito Melhor Jogador de um Campeonato Europeu. Até agora, perdeu apenas uma das sete disputas de pênaltis que disputou.

    O italiano deve conquistar mais prêmios neste ano, após a tríplice coroa do PSG, sendo o grande favorito ao Troféu Yashin da Bola de Ouro e ao prêmio The Best da FIFA de melhor goleiro. Ele também já havia sido apontado como o melhor goleiro do mundo pelo índice do CIES Football Observatory, antes mesmo de levantar os três títulos coletivos da temporada.

  • Paris Saint-Germain v FC Internazionale Milano - UEFA Champions League Final 2025Getty Images Sport

    De volta ao básico

    Portanto, apesar das preferências de Luis Enrique e de alguns erros gritantes, é evidente que o City contratou um goleiro de renome mundial, que já atuou no mais alto nível e suportou a pressão de defender Milan, PSG e a seleção italiana. Aos 26 anos, ainda tem muito a oferecer, mas já soma uma década de experiência desde que estreou pelo Milan aos 16.

    Donnarumma não dará ao City a mesma saída ofensiva que Ederson proporcionava, mas, nas últimas temporadas, os erros do brasileiro começaram a comprometer os benefícios de sua qualidade na distribuição. De fato, Ederson foi um dos principais responsáveis pelo fracasso do City na última Champions League, e a resposta do clube foi contratar o grande destaque da competição 2024/25.

    Há alguns paralelos com a chegada de Haaland, já que Guardiola mudou sua abordagem habitual diante da oportunidade de contar com o melhor do mercado. Para alguns, pode parecer uma traição aos princípios do treinador, mas outra leitura possível é que Ederson era um caso único e, diante da escassez de candidatos de elite, o City optou por voltar ao básico e garantir um dos melhores goleiros do mundo debaixo das traves.

    Se Donnarumma levantar novamente a taça da Champions League em Budapeste, no fim de maio, ninguém falará dos princípios táticos com a bola nos pés.