Beijo sem consentimento em jogadora da Espanha na Copa do Mundo e o passo a passo da crise com o presidente da federação

A Espanha jamais havia chegado às quartas de final de uma Copa do Mundo - e acabou fazendo bem mais do que isso. Contra uma Inglaterra que acabara de sagrar-se campeã da Eurocopa e vinha ainda invicta no mundial, tinha um duro teste pela frente.

Um chute cruzado de Olga Carmona, aos 29 minutos do primeiro tempo, contudo, deixou as coisas um pouco mais fáceis.

Após o apito final, durante a festa sob muito confete, o beijo sem consentimento: as jogadoras fizeram uma fila para receber suas medalhas de honra e cumprimentar grandes cartolas do futebol - dentre eles, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, e Rubiales, que beijou a boca de Hermoso em meio às celebrações. Veja no vídeo abaixo:

O momento logo gerou grande repercussão nas redes sociais. "Não gostei, hein", disse Hermoso, rindo, em um vídeo no vestiário após piadas das companheiras de time. No Instagram, Salma Paralluelo postou um story dizendo que o elenco iria a Ibiza "e lá vamos celebrar o casamento de Jenni e Luis Rubiales".

Questionado sobre o beijo no pós-jogo, Rubiales afirmou: "O beijo com Jenni? Tem idiotas por toda parte. Quando duas pessoas têm uma demonstração insignificante de afeto, não podemos dar atenção à idiotice. Somos campeões e é com isso eu eu fico".

A atacante, por fim, tentou mudar o foco: "Não se deve especular sobre um gesto de amizade e gratidão, ganhamos uma Copa do Mundo e não vamos nos desviar do que é importante".

Jogadoras de um lado; um técnico que, minutos antes, havia guiado suas atletas ao topo do mundo, do outro. Esta foi uma cena muito repercutida logo depois do apito final na finalíssima em Sydney, durante a comemoração do título inédito. Entretanto, pode não ter surpreendido muita gente.

Tudo começou dez meses antes da vitória por 1 a 0 sobre a Inglaterra. Quinze atletas da seleção pediram, via abaixo-assinado, a demissão de Jorge Vilda, alegando, entre todos os motivos colocados, discordâncias táticas e problemas com o modelo de gestão de grupo. Foram citados até falta de cuidado médico e direito à privacidade.

Entretanto, o apelo, obviamente, não foi acatado, e Vilda permaneceu respaldado internamente para a disputa do mundial. Porém, dada a permanência, algumas atletas cumpriram com a promessa de que não iriam à Austrália no caso da troca no comando técnico não ser realizada - Mapi Leon e Patri Guijarro são destaques.

É fato, portanto, que os bastidores já estavam quentes muito antes do acontecimento do último domingo. Rubiales é apenas mais um capitulo das disputas entre jogadoras e federação.

Incrível pensar que esta seleção conquistou o mundo.

Na quinta (24), a Fifa anunciou a abertura de uma investigação contra Rubiales. De acordo com a nota oficial publicada, o procedimento se dá "pelos eventos ocorridos durante a final", que "podem constituir violação do artigo 13 do Código Disciplinar da Fifa", que dita sobre comportamentos potencialmente ofensivos.

"O Comitê Disciplinar da Fifa só fornecerá mais informações sobre estes processos disciplinares depois de emitir uma decisão final sobre o assunto", continuou o documento. "A Fifa reitera o seu compromisso inabalável de respeitar a integridade de todos os indivíduos e condena veementemente qualquer comportamento em contrário".

Dias depois, no sábado (26), a Fifa anunciou o afastamento de Rubiales por 90 dias.

A federação espanhola de futebol, em comunicado, afirmou que "diligências internas" haviam sido abertas.

Também nesta sexta, Victor Francos, secretário de esportes e presidente do Conselho Superior de Esportes da Espanha (CSD), confirmou que a organização entrará com uma denúncia a Rubiales no Tribunal Arbitral do Esporte.

A decisão parte justamente depois da coletiva polêmica do presidente da federação espanhola, tratada como "não satisfatória" por Francos.

"Eu quero ser bem claro. O Sr. Rubiales não fez jus ao que as jogadoras esperavam. Não fez o seu dever. Suas explicações não correspondem com seu comportamento", explicou. "O que ele fez foi alimentar a controvérsia, reafirmar justamente aquilo que dissemos sermos contra", concluiu.

"O Governo da Espanha não ficará alheio a isso. O Sr. Rubiales afirmou que não renunciaria, mas queremos dizer, com todo o respeito, que a aliança deste governo com a presidência da RFEF termina hoje".

O desdobramento mais recente aconteceu na manhã desta sexta-feira (25). Após uma série de reportagens desta semana apontarem para a saída de Rubiales, o comandante concedeu entrevista coletiva na qual negou ter beijado Hermoso à força e deixou claro: não renunciará.

"O desejo que eu poderia ter naquele beijo era o mesmo que eu poderia ter beijando uma das minhas filhas. Portanto, não há desejo e não há posição de domínio. Foi um beijo espontâneo, mútuo e eufórico. E, acima de tudo, consentido", afirmou.

"Me disseram que o melhor era que eu renunciasse. [Mas] tem que haver um motivo para te tirarem de um lugar. Um selinho consentido é para me tirar daqui?", questionou. "Quem me conhece sabe que iremos até o fim. Espero que a lei seja cumprida".

Confirmando sua permanência, Rubiales tem mandato até 2024. A comitiva desta sexta veio após vários pedidos oficiais para que deixasse o cargo.

O ato de Rubiales sofreu grande condenação dos mais diversos setores do mundo do futebol - e da sociedade. A lista vai desde o topo da hierarquia política do país até as colegas de seleção de Hermoso.

"O governo precisa agir com urgência: a impunidade para o machismo acabou. Rubiales não pode continuar no cargo", disse a vice-presidente da Espanha, Yolanda Díaz, em sua conta oficial no X, antigo Twitter.

A Ministra da Igualdade, Irene Montero, também se posicionou na rede social: "Silenciá-la (Hermoso) não funcionou. Agora, tirar créditos da vítima, de quem lhe fornece suporte e das demandas feministas por direitos também não vai funcionar. Somente 'sim' é 'sim'". Javier Tebas, comandante da La Liga, o Campeonato Espanhol, também teceu críticas a Rubiales.

Pelo lado das jogadoras, Alexia Putellas eleita melhor do mundo nas duas últimas edições da Bola de Ouro, disse que "isso é inaceitável. Basta. Com você, Jhenni Hermoso". Aitana Bonamtí, a grande favorita para ficar com a coroa de Putellas neste ano, também se colocou ao lado da atacante: "Há limites que não podem ser cruzados, e isto não podemos tolerar. Estamos contigo, companheira".

Ex-goleiro do Manchester United e da Espanha, David de Gea escreveu: "Meus ouvidos estão sangrando". Iker Casillas, ex-arqueiro do Real Madrid e outro ídolo da seleção espanhola, simplesmente publicou: "Constrangedor".

E tem mais: também nesta sexta, o centroavante Borja Iglesias anunciou que não atuará mais pela seleção enquanto Rubiales estiver encarregado: "Vestir a camisa da seleção espanhola é uma das maiores honras que tive na carreira. Não sei se serei convocado mais vezes no futuro, mas tomei a decisão de não mais jogar pela seleção até as coisas mudarem e esse tipo de ato passar a ser digno de punição".

Comandante da Espanha na Copa do Qatar, o técnico do Paris Saint-Germain, Luis Henrique, defendeu, por outro lado, a permanência de Rubiales: "O labor e o trabalho de Luis Rubiales à frente da RFEF nos últimos anos tem sido excepcional", elogiou." Eu diria que o trabalho dele é sobressalente. Sobre os episódios que aconteceram, creio que o presidente reconheceu seus erros e não acho que devo dar minha opinião sobre o assunto. Repito, é um trabalho sobressalente".

Rubiales iniciou a carreira no futebol atuando nas categorias de base do Atlético de Madrid, se profissionalizando pelo Guadix. Suas passagens de maior expressão vieram por Xerez e Levante. Uma vez aposentado, assumiu a presidência da Associação de Futebolistas Espanhóis até 2017, quando renunciou frente ao desejo de comandar a RFEF.

E assim o fez. Eleito em 2018, contudo, logo se envolveu em sua primeira polêmica. Pouco antes da Copa da Rússia, o até então técnico da Espanha, Julen Lopetegui, tinha negociações bem avançadas com o Real Madrid e deveria assumir os Blancos a partir do segundo semestre daquele ano, depois do mundial. Rubiales não gostou, entretanto, da movimentação nos bastidores e desligou Lopetegui dias antes do início da Copa. Fernando Hierro foi o substituto escolhido e não passou das oitavas de final, caindo para a dona da casa, nos pênaltis. Na apresentação ao Real Madrid, Lopetegui se emocionou ao lembrar da demissão.

Outro bastidor questionável envolve o ex-zagueiro ídolo do Barcelona e da Espanha, Gerard Piqué. Em divulgação de áudios privados entre o então atleta do Barça e Rubiales pelo site El Confidencial, o mandatário agradece Piqué por tê-lo ajudado a levar a Supercopa da Espanha para a Arábia Saudita, e afirma estar lhe destinando uma comissão de 24 milhões de euros (cerca de R$ 131,6 milhões, na atual cotação).

Durante a final, ainda, outra polêmica: ao lado da Rainha da Espanha, Letizia Ortiz, Rubiales celebrou o título com um gesto obsceno, colocando as mãos nas partes genitais, e gritando 'chupa' em direção ao campo. Na última segunda-feira (21), no dia seguinte à polêmica, afirmou que "com certeza precisava se desculpar à Rainha e a todos que se ofenderam", mas ressaltou entender não merecer ser alvo "dessa caçada".