Como o corajoso Dele Alli abre caminho para mais jogadores cuidarem da saúde mental

A entrevista gerou uma onda de apoio da comunidade do futebol e da sociedade em geral em relação a Dele Alli. Anthony Kelly, da Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças (NSPCC, na sigla em inglês), acredita que a entrevista trará esperança a outras vítimas de abuso sexual infantil.

"Quando alguém com um papel de destaque, ou alguém com imagem pública, mostra que o abuso sexual infantil pode acontecer com qualquer pessoa, isso, esperançosamente, encoraja outros a se manifestarem e procurarem apoio", diz Kelly, gerente de Serviços Diretos da NSPCC no Centro Hargreaves em Liverpool, em entrevista a GOAL.

"Vimos um jogador de futebol profissional falar sobre sua experiência de abuso sexual, o que permite que outros em situações semelhantes saibam que não estão sozinhos."

"O abuso na infância pode ter um impacto devastador sobre aqueles que o vivenciaram e pode durar até a vida adulta. Alguns têm receio de falar sobre isso, pois temem que possam ter problemas, que possam perturbar suas famílias ou que de alguma forma sejam culpabilizados. Mas sempre queremos lembrar às pessoas que nunca é o caso, e sempre encorajamos aqueles que sofreram abuso, não importa quando tenha acontecido ou quem seja o agressor, a se manifestarem e buscarem apoio."

Os números sobre abuso infantil são horríveis. De acordo com a NSPCC, mais de 100 mil chamadas relatando abuso sexual infantil foram feitas à polícia no ano passado, mas Kelly enfatiza que "a verdadeira dimensão desse crime devastador é muito maior".

A única coisa positiva é que as vítimas agora se sentem mais confiantes para se manifestar, e as autoridades estão lidando com mais casos. A sociedade também está se tornando mais compreensiva em relação a essa questão.

A Linha Direta da Criança, o serviço de ajuda da NSPCC para crianças vítimas de abuso, realizou mais de 15 mil sessões de aconselhamento entre 2021 e 2022, nas quais as crianças falaram sobre abuso. Desse total, cerca de 2.200 crianças revelaram o abuso pela primeira vez.

Considerando o que sabemos agora sobre o que Dele passou, é notável que ele tenha se tornado um jogador importante e com passagem por seleção. Alguns aspectos de sua criação eram conhecidos, como o fato de ele preferir ser chamado de Dele em vez do sobrenome de seus pais biológicos e o fato de ter sido adotado.

No entanto, a extensão de seu sofrimento na infância era desconhecida, e não é surpresa que ele tenha escondido isso por tanto tempo. O mundo do futebol é implacável e, até recentemente, mostrar emoções poderia ser visto como sinal de fraqueza. Mas o fato de ele ter se manifestado e contado sua história mostra um progresso sobre esta percepção.

"As pressões que acompanham ser um atleta ou uma figura de destaque são inegáveis, mas falar e buscar apoio para casos de abuso sexual infantil é sempre a coisa certa a se fazer. Nossa visão é que ninguém deveria ser deixado sofrendo em silêncio", acrescenta Kelly. O Everton também apoiou a campanha "Segurança no Esporte" da NSPCC, que promove a proteção no esporte infantil.

A Associação de Jogadores Profissionais de Futebol (PFA) também oferece suporte para jogadores de futebol atuais e aposentados que estão enfrentando problemas de saúde mental.

"É incrivelmente corajoso da parte do Dele contar sua história com tamanha honestidade", afirmou a PFA em um comunicado a GOAL. "É por isso que é tão importante quando pessoas como ele falam com tanta abertura. Trabalhamos arduamente para garantir que os jogadores estejam cientes do suporte disponível para eles, mas também para ajudar a remover as barreiras que podem impedir as pessoas de pedirem ajuda, independentemente de quais sejam seus problemas", completou a entidade.

Mesmo antes de se manifestar, havia uma percepção de que Dele era, em suas palavras, "um garoto festeiro" quando estava se destacando. Ele afirma que isso não era verdade até os 24 anos, e depois "chegou a um ponto em que isso [as festas] acontecia, e eu estava em um lugar ruim".

O jogador também falou sobre o impacto de José Mourinho chamando-o de "preguiçoso" no documentário da Amazon Prime "All or Nothing", que foi assistido por milhões de pessoas. Embora ele não tenha abordado profundamente as redes sociais durante sua entrevista no programa The Overlap, Dele falou no documentário sobre o que as redes sociais podem fazer com a autoestima e a mentalidade de um jogador de futebol.

"As redes sociais dão a todos uma plataforma para expressar sua opinião. Em um minuto é 'eu te odeio, saia do nosso clube'. Na semana seguinte, é como 'Eu te amo tanto'. Obviamente, isso depende se eu fiz gol ou não. Se você fica ouvindo o que as pessoas dizem quando estão elogiando o tempo todo, pode se deixar levar. E se elas estão dizendo coisas ruins, você obviamente pode perder confiança."

A NSPCC também destaca o impacto que as redes sociais podem ter sobre os jovens, e a organização está fazendo campanha para modificar o Projeto de Lei de Segurança Online do Reino Unido.

Embora a entrevista de Dele tenha sido tão difícil de assistir, por trás do trauma havia uma mensagem positiva. Fica a esperança de uma retomada em sua carreira, agora que buscou ajuda para seus problemas de dependência e deixou o mundo saber o que passou.

"Quero reiterar o fato de que as pessoas não precisam temer a mudança. Acho que a mudança é sempre difícil, quando algo é desconfortável e difícil, você sente algo, fica com medo, fica com receio", disse Dele.

Kelly acredita que pode haver repercussões positivas a partir da entrevista e que mais crianças e adultos se sentirão empoderados para se manifestar e buscar ajuda para o trauma.

"Espero que isso lembre aos outros que eles também podem falar sobre isso, que podem procurar seus pais, um adulto de confiança, um professor ou amigos com quem possam conversar, e contar com a ajuda de nós mesmos por meio da Linha Direta da Criança. Se há uma coisa que espero que resulte disso, é que as pessoas sejam lembradas de que podem falar sobre isso e que há ajuda disponível para elas."