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Football cocaine problem GFX 16:9GOAL

Como a cocaína vem tomando conta das torcidas na Inglaterra: por dentro do problema sério que provoca aumento de prisões e risco de vício

É um sábado de agosto nublado e quente em Manchester, algumas horas antes do Manchester United receber o Nottingham Forest em Old Trafford. As grandes multidões ainda estão por chegar, embora muitas pessoas estejam se aproximando das imediações do estádio. Mas um torcedor, provavelmente com pouco mais de 20 anos e vestindo um uniforme réplica completo, está se comportando de maneira bastante diferente dos demais. Ele parece estar cheirando cocaína por um tubo enquanto caminha pela rua.

Em um nível, é chocante testemunhar tal coisa, uso flagrante de drogas em plena luz do dia no início da tarde. E, no entanto, não é de forma alguma uma cena fora do comum nos tempos modernos. Não é segredo que as pessoas usam cocaína em partidas de futebol na Inglaterra, e tampouco é um fenômeno novo. Mas em 2025, não são apenas os "hooligans" que usam o produto em torno das partidas de futebol.

Quem frequenta os estádios ingleses pode observar o comportamento dos torcedores, desde a Premier League e grandes torneios internacionais até os níveis inferiores do futebol local. Com certeza dá para ver algumas pistas.

  • England fans Euro 2020 finalGetty

    'Sem regras' em Wembley

    O exemplo mais óbvio de uso flagrante de cocaína foi em torno da final da Euro 2020 entre Inglaterra e Itália, capturado por câmeras de celulares e transmitido pelas redes sociais e depois reutilizado para um público ainda maior no documentário da Netflix A Final: Caos em Wembley. E quando a Inglaterra chegou à final da Euro 2024, fãs com olhares vidrados estavam novamente lá para ver sua seleção tentar conquistar pela primeira vez a glória continental contra a Itália. Bem, eles conseguiram ver parte do jogo.

    "Havia filas de torcedores ingleses para as cabines dos banheiros no intervalo," disse o jornalista Ken Early no podcast Second Captains. "Este foi o maior jogo que a Inglaterra jogou em muito tempo, e metade deles perdeu os primeiros 15 minutos do segundo tempo porque, por algum motivo, ninguém queria usar o mictório."

    Pelo menos eles estavam mostrando mais discrição do que alguns de seus colegas torcedores ingleses em casa durante o torneio. Durante uma reportagem com uma multidão de foliões em Newcastle comemorando a vitória nos pênaltis sobre a Suíça, um homem foi visto colocando um pó branco no nariz.

    A reportagem da GOAL testemunhou uma cena semelhante no metrô após a final da Euro 2020: um homem cheirando pó enquanto estava de pé, espalhando-o por toda a roupa. Isso ecoou uma imagem que se tornou viral mais cedo naquele dia: um vídeo de um homem usando um chapéu estilo "bucket" usando cocaína enquanto centenas de pessoas torciam efusivamente. O homem foi posteriormente identificado como Charlie Perry, e não foi nem mesmo a coisa mais chocante que ele fez naquele dia.

    Foi quando ele abaixou as calças na frente de uma multidão, colocou um sinalizador em seu traseiro e depois acendeu-o. "Não havia regras naquele dia. Eu estava fora de mim e amei cada minuto," Perry disse ao The Sun, revelando que tinha começado a beber às 8h30, consumido 20 latas de cidra e "cheirado um monte de pó" antes de invadir Wembley sem ingresso.

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  • Football policeGetty

    Estádios virando "lavanderia"

    Mas não são apenas evidências anedóticas ou vídeos virais que apontam para um aumento no uso da droga no futebol inglês. Pesquisadores de um estudo de 2023 da Universidade de Stirling descobriram que frequentadores de partidas e autoridades relataram um aumento significativo de torcedores consumindo cocaína. O uso da droga foi descrito pela polícia como "excessivo" e um fator maior na violência em partidas do que o álcool.

    O aumento do uso de cocaína nos estádios foi discutido no parlamento do Reino Unido em 2023, quando Peter Houghton, da Associação de Oficiais de Segurança do Futebol, disse aos deputados que os banheiros em um jogo do Cambridge United "pareciam uma lavanderia – havia tanto pó por todo lado". Um estudo de 2021 do International Journal of Drug Policy descobriu que cerca de 30% das pessoas entrevistadas alegaram ter testemunhado o consumo de cocaína nos estádios de futebol.

    A ubiquidade da droga nas partidas também está afastando algumas pessoas de irem aos jogos. Um torcedor de um clube da Premier League disse à GOAL que não frequenta mais partidas fora de casa precisamente porque o uso de cocaína era tão prevalente e não queria estar perto disso.

    As autoridades se tornaram mais rigorosas com o aumento do uso de cocaína no futebol. Cerca de 200 pessoas foram presas por posse da substância "dentro e ao redor" de estádios britânicos na temporada 2022/23. A partir de 2022, qualquer pessoa condenada por usar ou vender drogas da "Classe A" em estádios pode ser proibida de assistir aos jogos por até cinco anos. Um torcedor do Charlton Athletic foi o primeiro a ser punido pela legislação. Ele foi banido de assistir aos jogos e proibido de se deslocar para dentro de um raio de duas milhas (3,2 km) do estádio da equipe, The Valley. Além disso, quando a Inglaterra joga fora de casa ele deve entregar seu passaporte.

  • NHS worker Getty

    Um aumento de 30% nas mortes

    Claro, os fãs de futebol estão longe de ser os únicos a consumir a droga no país. O uso de cocaína é tão disseminado na sociedade britânica que o Escritório de Estatísticas Nacionais declarou que é a segunda droga mais usada depois da cannabis na Inglaterra e no País de Gales na última década, com 2,1% dos adultos entre 16 e 59 anos usando-a, e 3,8% das pessoas entre 16 e 24 anos. E o aumento está tendo um efeito mortal na população.

    O ONS relatou 1.118 mortes envolvendo cocaína em 2023, o que foi 30,5% a mais do que no ano anterior (857 mortes) e quase 10 vezes mais do que em 2011. Os homens representaram 79,2% das mortes envolvendo cocaína. A natureza ritualística do futebol e o fato de as pessoas frequentarem os jogos tão regularmente, muitas vezes com as mesmas pessoas, fazem dele uma porta perigosa para o uso repetido.

    "Com qualquer droga, se você a está usando nos finais de semana, quando vai assistir a um jogo, ir a uma festa ou passar um tempo com amigos, está criando um hábito em torno disso. E, para muitas pessoas, isso pode ser um hábito bastante caro, e pode se virar algo que leva ao vício também, se você não tomar cuidado com isso," diz André Gomes, líder de comunicações da organização beneficente de informações sobre drogas Release.

    "Você está definitivamente criando as condições para a dependência e para o vício, sabe, em parte porque é um ambiente tão social. É uma substância tão social. Você vai e toma algumas carreiras, e se divertem, e isso leva você a associar assistir futebol ou beber algumas bebidas com o uso de cocaína também. E você está apenas levando a um ambiente cada vez mais caótico."

  • Danny Dyer Marching PowderGetty

    Não apenas hooligans

    Futebol e cocaína estão de volta aos holofotes agora, muito por conta do novo filme britânico Marching Powder, estrelado por Danny Dyer. Ele interpreta um homem na casa dos 40 anos cujo casamento e vida estão se desfazendo devido ao seu vício em 'dickie' (gíria local para cocaína) e sua tendência de se meter em brigas enquanto acompanha seu time, cujo nome não é revelado. O filme apresenta inúmeras cenas de homens cheirando pó em ônibus e no meio de pubs, alimentando suas brigas pré-jogo.

    Mas Dyer disse a GOAL: "Escutem, deixem-me dizer uma coisa agora, nós não estamos glorificando isso, certo, nós não estamos glorificando isso de jeito nenhum. As pessoas acham pela publicidade que estamos, mas você precisará assistir a este filme e entender o quão ridículo isso é. Sabe, caras beirando os 50 ainda fazendo isso, dando cabeçadas nas pessoas. Você tem que crescer, tem que crescer e esse é o ponto deste filme." Dyer também disse que a cocaína "destrói vidas" e ele sabe bem, tendo passado um tempo em reabilitação para dependência de drogas, entre elas o crack. O personagem de Dyer em Marching Powder está desempregado, é um péssimo marido e um terrível exemplo para seu filho. Não é exatamente alguém a quem imitar.

    O filme pode dar a impressão de que a cocaína é algo que apenas brutamontes se interessam para alimentar suas brigas. A realidade é que muitos torcedores típicos participam disso a cada semana, sem se envolverem em violência ou comportamento antissocial. Dois torcedores do mesmo clube da Premier League que falaram com a GOAL - e por razões óbvias pediram para serem mantidos anônimos - disseram que o principal motivo para fazê-lo era poder continuar bebendo ao longo de um longo dia indo para o jogo.

    "Quando você está em uma viagem europeia, a dura realidade é que o jogo não começa até tarde da noite. Você está bebendo mais cedo do que o habitual. E quando você está na casa dos 30 ou 40 anos, isso se torna bastante cansativo," disse um torcedor, que assiste à maioria dos jogos de seu time. "A razão pela qual é popular entre os torcedores é que permite que você beba mais e por períodos mais longos. Na minha experiência, não é para se envolver em violência ou sentir-se mais confiante ou mudar de personalidade, é mais por razões de resistência. É uma dose de adrenalina, você se sente acordado, animado e pode continuar a festa. Ninguém quer ser aquele cara que vai para a cama cedo ou que nem consegue chegar ao jogo."

  • England fansGetty

    Combinação letal

    Quando perguntado se ele já se preocupa em desenvolver um vício, há uma longa pausa. "Esse pensamento passou pela minha mente em várias ocasiões", ele diz. "A maneira como me convenço de que isso não é um problema é que só faço isso socialmente e nos fins de semana, nunca sozinho. Eu conheço meus limites. Eu sei quando já usei o suficiente."

    Ele estima que usa cocaína aproximadamente uma vez a cada cinco jogos, mas conhece pessoas com um hábito mais regular: "Conheço muitos torcedores que não vão a um jogo em casa sem pegar algo", ele diz. "Isso faz parte da rotina do dia de jogo."

    O outro torcedor consultado disse que foi apresentado à cocaína em uma semifinal da FA Cup em Wembley. Ele nunca se preocupou com seu hábito, pois disse que nunca fazia isso com tanta frequência e nunca procuraria por conta própria, apenas participando com amigos. Ele recorda ter feito isso de forma imprudente em seu assento em um jogo fora de casa contra o Arsenal. Enquanto seu time estava "varrendo" os Gunners, ele estava muito paranoico sobre ser visto para realmente aproveitar o jogo. Ele não fez isso nas últimas duas temporadas, com o nascimento de seu primeiro filho desempenhando um papel importante para dar um tempo. Ele continua a gostar de ir aos jogos. Perguntado por que a cocaína era tão atraente, ele diz, sem nenhum sinal de ironia: "Você pode beber mais e ficar sóbrio."

    Misturar cocaína com álcool, no entanto, é como brincar com fogo. As duas substâncias se metabolizam para formar uma terceira, a cocaetileno, que é muito mais poderosa e perigosa. Gomes explica: "Muitas pessoas não estão cientes disso. Está no seu corpo por muito mais tempo. Tem uma carga corporal muito alta, o que pode levar a uma série de complicações de saúde. Pode colocar muito estresse no coração e muito estresse no fígado.

    "Pessoas que têm condições cardíacas subjacentes, condições respiratórias também podem ser impactadas por isso. A saúde cardiovascular fraca pode ser significativamente impactada por ter mais cocaetileno dentro do seu corpo."

  • England fansGetty

    Cuidado mútuo

    Gomes está defendendo uma abordagem menos punitiva do governo e da polícia do Reino Unido e sim uma conversa mais aberta sobre o uso de drogas. Ele acrescenta: "O que tem sido realmente frustrante é como a mensagem em torno disso tem sido de reprimir a cocaína, reprimir o uso de drogas, mas você realmente não vê nenhuma informação sobre como [o uso de cocaína] poderia estar impactando sua saúde, como você poderia estar reduzindo isso. Não há realmente uma cultura disso."

    Enquanto torcedores estão bastante felizes em se gabar por consumir drogas - basta ouvir alguns dos cânticos nas arquibancadas que celebram o hedonismo -, conversas honestas sobre seus perigos são muito mais raras. E Gomes quer ver essa mudança.

    "Precisamos construir uma cultura de comunidade, de cuidado. Isso é o que o futebol representa, não é? Você deve ser uma comunidade, e há uma unidade dentro de um clube. Você deve estar cuidando da saúde uns dos outros," ele diz. "Agora mesmo não há uma conversa acontecendo sobre a redução desses danos. Por causa dessa intensa narrativa governamental de reprimir seu uso, você está na verdade estimulando uma cultura de silêncio. O que precisamos reconhecer é que isso está acontecendo. Vamos garantir que as pessoas estejam cientes dos danos. Garantir que estejam sendo seguras em relação ao seu uso, e então as pessoas poderão tomar suas próprias decisões informadas sobre se deveriam ou não usá-lo, ou se a quantidade que estão usando de cocaína é muito alta, se conseguem controlar, se querem reduzir, e onde procurar ajuda."