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Eurico Miranda Vasco  17 01 2017Foto: Carlos Gregório Jr/Vasco.com.br

Mais influente de uma geração, Eurico personificou a ideia do que é ser um cartola

Quando o americano Franklin Foer lançou o seu Como o Futebol Explica o Mundo, em 2004, milhares de torcedores tiveram contato com reflexões sobre o impacto da globalização inserida ao jogo. O jornalista rodou o planeta para tratar de temas como hooliganismo, mercado, nacionalismo, disputas religiosas. Enquanto isso, a parte sobre o Brasil não tratou da seleção então campeã mundial ou das transferências para a Europa, mas sim rendeu um capítulo sobre o poder dos dirigentes. A sobrevivência dos cartolas teve em Eurico Miranda, presidente do Vasco à época, a figura central.

A revista Piauí, ainda antes de completar dois anos de vida e em processo de consolidação como um dos principais veículos para perfis jornalísticos no país, também foi de Eurico. Era abril de 2008. "No Maracanã, repetiu os rituais: não apresentou crachá, visitou os jogadores no vestiário, disse um palavrão para o funcionário que vigia a entrada do gramado e se acomodou numa cabine de imprensa. Ficou calado na maior parte da primeira etapa, que terminou em 1 a 1. Aos dez minutos do segundo tempo, levantou-se e avisou: 'Vou mijar.' Não voltou mais", termina o texto do repórter Roberto Kaz.

Tamanha repercussão não é exagero de personagem. Ilustra que Eurico Ângelo Oliveira Miranda, morto nesta terça, 12, aos 74 anos, por complicações no tratamento de um câncer no cérebro, foi o mais influente dirigente esportivo de sua geração. Desde os anos 1970, quando mergulhou na política do Vasco da Gama, fez questão de colocar o pé em todas as bolas divididas do futebol brasileiro. Onde há um ponto que valha pesquisa, lá estará uma frase de Eurico num jornal antigo. Para o bem e para o mal, como o próprio parecia gostar que fosse, era um símbolo da gestão do futebol brasileiro nas últimas cinco décadas.

A carreira foi longa. Começou no Vasco em funções administrativas ainda no final dos anos 1960, e em pouco tempo passou a participar de discussões mais importantes. Em 1980, virou assessor da presidência da chapa de Alberto Pires Ribeiro. E, com a transformação dos negócios no futebol - muito pela importância do mercado junto à Europa, mas também pela articulação de patrocínios e direitos, como a relação entre Clube dos 13, Coca Cola e Rede Globo em 1987 -, Eurico se tornou figura central nos bastidores da bola no Brasil. Era ele quem aparecia, por exemplo, no retorno de Roberto Dinamite do Barcelona, na venda de Romário ao PSV, da Holanda, ou para defender que os gigantes do futebol brasileiro não deveriam ser rebaixados.

Em 1989, quando o Brasil sediou a Copa América pela última vez, Eurico Miranda era o diretor de futebol da CBF. Diante das vaias e da pressão feita pela torcida baiana nos jogos da Fonte Nova, em razão da ausência do atacante Charles, filho da terra, no time de Lazaroni, Eurico comprou briga. Chamou o jornalista Raimundo Varela de débil mental depois do apresentador de TV rasgar ingressos do jogo, convocando os torcedores ao boicote.

Vice-presidente do Vasco, concorreu ao cargo de deputado federal em 1990, mas não foi eleito. Conseguiu uma cadeira em 1994 e novamente em 1998, mas ali, independente do cargo ocupado, seu nome já se confundia com o do clube de São Januário. Tanto que presidente de fato ele foi por apenas dois períodos: na gestão entre 2001 e 2008; e, mais recentemente, entre 2014 e 2018.

E durante esse tempo Eurico esteve em todas. Se nos anos 1980 ele comprava briga com o Flamengo, o que impactou o acirramento da rivalidade local, nos 1990 ele foi para cima da Parmalat, cogestora do futebol do Palmeiras, dificultando ao máximo a saída de Edmundo, que acabou no clube paulista em 1993. Anos depois, no fim de 1999, aceitou regalias de Romário e trouxe o Baixinho de volta pouco depois do atacante ser demitido do Flamengo. "Ele veio para ganhar o título mundial", chegou a dizer. Mais tarde, em 2007, Romário encerrou a rápida passagem como treinador cruzmaltino exatamente reclamando de interferências de Eurico.

Falando em Mundial, o cartola é protagonista na trama que leva o Vasco como um dos representantes do Brasil no torneio realizado em janeiro de 2000. O texto é de uma coluna de Juca Kfouri, na Folha de S. Paulo, em junho de 1999: "Por que a CBF trataria de beneficiar o Vasco, clube que tem negócios com Pelé? O simples fato de pagar os favores que Eurico Miranda tem feito na Câmara Federal seria o suficiente. Mas tem mais. Eurico Miranda está rompendo com a empresa de Pelé, por causa do envolvimento desta, que representa a ISL, com o Flamengo. E o Corinthians? Ora, o Corinthians é Traffic, Traffic é CBF, é Klefer, empresa de Kleber Leite, a escolhida pela CBF para ser a responsável pelo marketing do Mundial de Clubes da Fifa. Em resumo, em nome do negócio do futebol, vão desmoralizar o negócio do futebol, porque o critério esportivo é relegado a segundo plano, porque, por ora ao menos, são os velhos José Hawilla, Ricardo Teixeira, Kleber Leite, Eurico Miranda, Alberto Dualib os responsáveis pela modernização."

No fim, o Vasco perdeu a final para o Corinthians e o clima esquentou na sequência da temporada. Ainda em abril aconteceram "elogios" que ficaram para sempre no folclore vascaíno. Edmundo chamou Romário de "príncipe" e Eurico de "rei". Romário, quando virou artilheiro, respondeu: "agora a corte está toda feliz: o rei, o príncipe e o bobo [Edmundo]".

São incontáveis as tantas histórias de Eurico Miranda como símbolo máximo da cartolagem no futebol brasileiro, aquela que não se cansa de tomar posições que interessam ao próprio nariz, sem medir esforços, temer consequências ou se permitir qualquer tipo de autocrítica. Para citar algumas mais conhecidas: em 2000, na final da Copa João Havelange, levou o time vestido com o patrocínio do SBT, como clara retaliação à Rede Globo; em 2002, foi contrário à mudança do Campeonato Brasileiro para o formato de pontos corridos, dizendo que se trataria da falência do futebol nacional; em 2005, quando 11 jogos foram remarcados em razão do escândalo da Máfia do Apito, lá estava ele, indo à Justiça Desportiva para que o jogo refeito, um empate do Vasco contra o Figueirense em São Januário, fosse também cancelado. "Se anulou uma partida porque houve algum tipo de coisa, tem que anular esse também", disse, reclamando da arbitragem de Carlos Eugenio Simon.

Foi também um dos dirigentes mais lembrados em vitórias rivais. Provocador, falastrão e extremamente clubista, ouvia poucas e boas nas derrotas. "Eurico, a gente vai festejar lá onde você reservou a festa do Vasco. Infelizmente não deu, deu Flamengo novamente. Mas está convidado, pode ir lá que a festa é sua também", disse um jovem goleiro Júlio César após a conquista do tricampeonato carioca do Flamengo, em 2001.

Ainda colecionou uma série de processos e batalhas em tribunais, como quando indiciado pelo desvio de recursos como apontou a CPI do Futebol, em 2001. Além disso, participou de algumas caóticas disputas políticas vascaínas - por exemplo a eleição cancelada em 2008, quando a vitória acabou sendo de Dinamite, e também o completamente confuso, para dizer o mínimo, pleito de 2017, em que a Justiça anulou a vitória de Eurico por fraude em uma das urnas. Como deputado, admitiu que o pagamento de propinas é uma prática comum entre políticos e também no meio do futebol.

No fim das contas, fica o legado de um cartola que representa muito do que há de ruim historicamente na função do dirigente brasileiro - abuso de poder, relações promíscuas, gestão apaixonada, mandatos longos, influência personalista. Também a memória de ter participando da montagem de grandes times da história de seu clube do coração, como o campeão da Libertadores no ano do centenário, em 1998, ou os dois últimos brasileiros, em 1997 e 2000. Goste ou não, o fato de ter sido, como o próprio dizia, um viciado pelo Vasco, o coloca como um personagem bastante singular na história do futebol brasileiro. Onde houve uma questão a ser debatida, da cor da camisa ao prêmio de campeão, de uma virada de mesa a um jogador polêmico, lá esteve Eurico Miranda.

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