
Foram raras as vezes que se viu, no esporte, um ou uma esportista passar do pouco ao muito reconhecimento em um período tão curto de tempo.
Megan Rapinoe não era nenhuma novidade para quem acompanha o futebol feminino - ou para os seguidores mais ferrenhos da seleção feminina dos Estados Unidos -, graças a seus títulos anteriores na Copa do Mundo e a medalha de ouro dos Jogos Olímpicos.
Mas esse foi um ano diferente. Ela conquistou algo a mais do que um segundo título mundial.
Aos 34 anos de idade, ela se tornou a primeira futebolista a se tornar uma superestrela cultural, no melhor sentido da palavra, uma atleta que representa mais do que seu trabalho para além das fronteiras dos Estados Unidos. Uma jogadora nos pensamentos de qualquer um minimamente interessado no esporte, e na boca do homem que manda na Casa Branca.
Neste ano, Rapinoe se diferenciou não só dentro de campo, mas fora dele também.
A Chuteira de Ouro da Copa do Mundo, a Bola de Ouro do torneio, o prêmio FIFA The Best e, agora, o Goal 50 se junta à lista de conquistas para comemorar os triunfos de Rapinoe e suas companheiras de seleção na França, durante o último verão europeu.
Mas ela também aparece como alguém que representa muito, muito mais.
Ela levou as pessoas a pensarem sobre o significado de ser um bom cidadão estadunidense, a examinarem suas consciências para, ao menos, pensarem em fazer a coisa certa.

Com a conscientização crescente que veio partir do seu ativismo, Rapinoe fez com que muita gente percebesse e valorizasse o que uma atleta LGBT assumida é capaz de fazer no mais alto nível.
Seja para falar sobre a deferência a uma bandeira e um hino, sobre a disparidade de salários entre os gêneros ou o lugar do futebol feminino na hierarquia das coisas.
Ela usou sua posição para espalhar uma mensagem, e para assumir uma atitude que vai completamente no oposto do que se vê no futebol masculino.
Raramente algum jogador de futebol fala de maneira tão aberta, mas ela conseguiu dar mais voz às suas palavras com seu desempenho em campo.
Considerada por muito tempo como uma das mais criativas e devastadores jogadoras de sua época, no entanto, Rapinoe explodiu somente aos 34 anos, entrando de vez no mainstream e se tornando a estrela e referência que é hoje.
Sua influência tem sido enorme, seu grande legado cresce a cada dia.
Rapinoe é a superestrela americana de futebol que o país não sabia que tinha.
Ela emergiu no cenário justamente quando mais se precisava de alguém como ela; como um antídoto a Donald Trump, como uma líder inspiradora para mulheres e meninas do mundo todo, como a voz que 2019 precisava ouvir.

Redding é a cidade conhecida como "Calabama".
Enquanto boa parte do resto do estado da California é liberal e vota à favor dos Democratas, Redding é ferrenhamente republicana.
Tanto o pai de Megan, Jim, como seu avô são veteranos do exército americano. Jim é dono da própria empresa de construção e votou em Trump nas eleições presidenciais de 2016.
Megan, em setembro de 2016, apoiou os protesto de Colin Kaepernick, quarterback na NFL que se ajoelhava durante a execução do hino nacional. Isso causou uma ruptura em sua cidade natal.
Os patriotas em Redding por muito tempo torceram pelo sucesso dela quando ela atuava pela seleção americana.
Mas os protestos no hino fizeram alguns se sentir desconfortáveis com isso.
Em Redding, há um projeto de futebol nomeado em homenagem a ela, localizado na 15 Rapinoe Way. Mas as opiniões na cidade ficaram fortemente divididas nos anos seguintes aos protestos.
De um lado ficou o respeito pelas conquistas dela dentro de campo e, do outro, um desejo de que ela mantivesse suas opiniões para si mesma.
Mas esta não é Megan Rapinoe. Dentro de campo e fora dele, ela é a mesma pessoa. Sem um não há como ter o outro.
Ela nunca foi o tipo de pessoa que se prostrou diante da do pensamento comum predominante. Ela fala o que pensa e pensa o que fala.
E, se o reconhecimento como uma talentosa futebolista não inclui o reconhecimento como uma ativista e um ícone de sua luta, ela nunca teve o interesse em receber isso.
Ela usou sua oportunidade quando recebeu o The Best, da Fifa, para destacar o racismo no futebol, em vez de falar as mesmas velhas frases sobre a importância do trabalho duro e de suas companheiras de equipe.
Antes da final da Copa do Mundo, ela acusou outras confederações de um desrespeito, ao marcar as finais da Copa América e da Copa Ouro no mesmo dia da final mais importante do futebol feminino.
A conversa que ela e suas companheiras deram início, sobre paridade de salários entre gêneros, ainda continua com o sucesso do time feminino se sobrepondo aos fracassos do time masculino como nunca se viu antes.

A história de Rapinoe começa no Big Bang do futebol feminino nos EUA e dura até hoje.
No momento em que Megan, junto com a irmã gêmea Rachel e seu pai, foi na semifinal da Copa do Mundo Feminina de 1999 entre Estados Unidos e Brasil no Stanford Stadium, na Califórnia, seu destino foi traçado.
Ela iria dividir o vestiário com algumas daquelas jogadoras que ela viu jogar em 1999, como sua primeira heroína no esporte, Kristen Lilly.
E agora, é ela quem desempenha esse papel de ídolo para as mais novas.
A mulher que viu e fez de tudo, desde lutar contra diversas e sérias lesões nos joelhos e ter que lidar com a angústia de perder Jogos Olímpicos e Copas do Mundo até superar todos os obstáculos e tomar o lugar, no auge, como a melhor jogadora do esporte.
O sucesso dela poderia garantir o lugar no imaginário esportivo americano como a garota de ouro, mas não é assim que tem acontecido.
Estes são dias estranhos, nos quais se espera que atletas fiquem calados e somente joguem bola. Mas Rapinoe é uma das poucas que se recusa firmemente a seguir essa lógica.
A oposição dela na eleição de Trump culminou no famoso vídeo em que ela declara: "Nós não vamos na p**** de Casa Branca", se os EUA vencessem o título na Copa do Mundo.
Ela foi a atleta americana mais popular no futebol a entrar em conflito direto com o Presidente no comando.

A eleição de Trump em 2016 pavimentou um caminho que leva à manifestações de hostilidade e intolerância de costa a costa nos Estados Unidos, comportamentos que Rapinoe não poderia tolerar, e tampouco permanecer em silêncio sobre.
Ela deu voz aos menosprezados e aos marginalizados.
Ela e a parceira Sue Bird, estrela da WNBA, foram o primeiro casal do mesmo sexo a aparecer na capa da revista Body Issue, da ESPN.
Desde sua revelação pública em 2012, Rapinoe têm sido porta-voz dos direitos LGBT. Se o silêncio faria dela cúmplice daquilo que ela mesma combate. então ela preferiu falar.
Trump atirou de volta, declarando que ela deveria focar em vencer a Copa do Mundo antes de pensar em uma viagem comemorativa à Casa Branca.
Depois disso, a primeira vez que ela pisou num gramado de futebol foi nas quartas de final da Copa do Mundo contra a França. Ela marcou dois gols.
Sua comemoração, uma confiante pose com os braços abertos como quem diz "fala mais agora" se tornou uma das mais icônicas do esporte nos últimos tempos. E, na final, ela deu tudo de si novamente.
Seu gol de pênalti colocou as americanas à frente da Holanda, e ajudou a dar o quarto título mundial para os Estados Unidos. De quebra, ela ainda colocou seu nome nos livros dos recordes como a artilheira mais velha de uma final de Copa do Mundo.
Foi o auge de uma jornada que começou lá atrás, em Redding, e terminou com Rapinoe, de novo, no topo do mundo.

Durante a Copa do Mundo de 2011, depois de ter marcado contra a Colômbia, Rapinoe pegou um microfone do lado de fora do campo e berrou a letra de "Born in the USA", música de Bruce Springsteen.
De muitas formas, esta é a canção perfeita para Rapinoe. De cara, você pode confundir com mais uma música que prega o patriotismo à bandeira americana.
Mas, analisando mais profundamente a letra, qualquer um pode entender que se trata de como a sociedade americana se perdeu, alienando seus filhos e filhas, e força uma grande reflexão do que a esta sociedade representa hoje.
E quando Megan Rapinoe se levanta para o hino - com o ajoelhar sendo proibido -, ela mantém um silêncio digno e faz os EUA fazerem o mesmo.
Ela mostra ao mundo que não existe um americano típico, ela tem o mesmo valor na nação do que qualquer apoiador de Trump. Ela “nasceu nos USA” e representa seus valores com distinção.
Não acredite que Rapinoe odeie seu país.
Ela o ama, e quer mudar ele para melhor. Se isso não é amor, então não sabemos dizer o que é.


