ETERNA

O trabalho da Formiga nunca termina

Raisa Simplicio e Rupert Fryer



"Meus irmãos não gostavam que eu jogasse futebol com outros meninos", lembra Formiga. Aparentemente para alguns, ela deveria estar "em casa, lavando louça".

Felizmente para o futebol, ela nunca deu ouvido a esses comentários maldosos, escutou seu coração e se fortaleceu bastante para não ser impedida por estereótipos de gênero sem sentido. Então, com passos de formiga, ela construiu uma das carreiras mais longas e célebres do futebol, entre homens e mulheres.

Miraildes Maciel Mota é única. Única mulher a disputar sete Copas do Mundo, a meio-campista de 41 anos se tornou também a atleta mais velha a entrar em campo pelo torneio este mês. Entre outros recordes, é carrega consigo a marca de disputar seis olimpíadas, todas as edições desde que o futebol feminino se tornou esporte olímpico.

Ela não vai durar para sempre, é claro, mas seu legado será eterno. Assegurado não só pelas suas façanhas em campo, mas também pela luta que ela lidera nos bastidores defendendo o futebol feminino e o empoderamento da mulher em um meio extremamente machista.

Ela não vai durar para sempre, é claro, mas seu legado será eterno. Assegurado não só pelas suas façanhas em campo, mas também pela luta que ela lidera nos bastidores defendendo o futebol feminino e o empoderamento da mulher em um meio extremamente machista.

Entrando no túnel do tempo de Miraildes, voltamos à infância da atleta, onde um torcedor visionário observando a forma como a menina jogava decidiu apelidar a meio-campista de Formiga.

"O apelido veio de um torcedor, quando comecei a jogar futebol, foi em Salvador, no meu primeiro campeonato, acho que eu tinha 13 anos. E a menor da turma e corria o campo todo. Então ele achou esse apelido aí para bater certinho com a minha função em campo", relembrou a jogadora em um bate-papo exclusivo com à Goal e à Plan Internacional, instituição global não governamental humanitária que utiliza o futebol como ferramenta para ajudar crianças das zonas mais pobres do mundo a encontrar seu potencial através de campanhas.

Foi correndo o tempo todo que Formiga conseguiu deixar os obstáculos para trás, o primeiro deles dentro da própria casa. Nascida em uma família humilde, a única mulher entre cinco homens, as dificuldades de se tornar uma jogadora em um universo predominantemente masculino eram ainda maiores.

"Eu enfrentei bastante dificuldades. Em relação ao meus irmãos, eles não gostavam de me ver jogando bola com outros meninos. Era o ciúmes, era também porque eu jogava bem mais do que eles. Os colegas ficavam zoando. As vezes falavam que futebol não era coisa de mulher, que tinha que ficar em casa lavando louça".

Seria preciso muito mais do que isso para fazer Formiga desistir. A garota, então, entrou o incentivo da matriarca da casa.

"Minha mãe sempre incentivou. “vai!”. Até porque ela não ficava em casa, ela ia trabalhar."

Esse incentivo foi fundamental para que Formiga não desistisse como outras meninas, que até gostavam de futebol, mas com medo do preconceito e das críticas, se escondiam e evitavam chutar a bola.

"Elas tinham esse medo. As vezes até eu ia até a casa delas  para chamá-las. Não, não vou, meu pai vai me matar”. “Olha, minha mãe...” e não sei o que, sabe? E muitas tinham talento. Com certeza tinham. Mas infelizmente com esse medo, com esse receio de receber esse preconceito. De não lidar um pouco com tantos xingamentos também, não só das pessoas de fora, mas de casa, inibiu muitas meninas e elas acabaram desistindo do sonho delas".

Formiga lutou e teve que deixar tudo para trás. Saindo do subúrbio de Salvador, ela começaria o que se tornaria uma carreira importante numa equipe que era uma espécie de junção com o Bahia, antes de seguir rumo a São Paulo.

"O maior desafio acho que foi viver sozinha. Viver em São Paulo longe da família. Por mais que eu tenha sofrido bastante, quando você sai de perto da família você sente falta. Você meio que perde o chão, porque, querendo ou não, a família é nosso alicerce. Qualquer coisa você tem o colo da mãe ali para chorar se tomou uma pancada. Tem a mãe para cuidar, comida e tudo".

Nos momentos de saudade, Formiga se apegava na bola para seguir sonhando e foi justamente essa barreira que deixou a craque mais forte para o que viria mais para frente. Para quem pensa que o início é a coisa mais complicada para uma mulher que quer jogar futebol, a meio-campista é a prova viva de que seguir no esporte é ainda mais duro mesmo depois de alcançar êxitos.

"É engraçado porque o quão difícil é continuar sendo profissional nesse esporte que sofre tantas mudanças toda hora. Tem horas que o futebol feminino está no auge no Brasil e você cria aquela esperança, aquela expectativa. Poxa, agora vai, vai, vai! Aí de repente passa a fase dos campeonatos, o negócio cai. Aí você fica sem entender".

Para exemplificar a situação, Formiga citou a olimpíada em que a seleção faturou a medalha de prata. A conquista das meninas causou um alvoroço, mas não foi suficiente para manter o futebol feminino em uma crescente.

"Só depois dessa olimpíada que a gente achou que as coisas iriam realmente melhorar. De repente, sumiu. Parecia que não existia mais o futebol feminino no país. Então você fica assim, meio que espantado. Falei “gente, o que é isso? Como pode uma coisa dessa? São coisas que acabam desanimando".

Com longa experiência e passagens por vários países de culturas diferentes, Formiga enxerga lá fora o que o Brasil ainda não conseguiu proporcionar para o desenvolvimento do futebol feminino no país.

"Às vezes as pessoas dizem “agora tem isso, tem aquilo”. Mas, às vezes, o isso e o aquilo não são o bastante. Hoje a gente não tem uma base forte assim. Não tem um trabalho de renovação forte. Não existe. Aqui fora já tem. E a gente ainda tá nessa dificuldade. A situação é difícil.".

É por isso que aos 41 anos, Formiga está este mês na França, onde tenta ajudar a Seleção Brasileira na luta pela Copa do Mundo, mas a verdade é que ela nem deveria estar lá, não pela qualidade indiscutível da craque, mas pela falta de um trabalho de base, que permita uma renovação mais rápida da Verde-Amarela.

"Hoje, sinceramente, eu gostaria de estar em casa, jogando num clube, e estar assistindo a seleção brasileira com baitas jogadoras, com uma renovação boa. Mas ainda tem que estar na ativa, né? E pra mim é um orgulho, uma satisfação muito grande de poder estar defendendo o Brasil. Isso sem dúvidas".

Formiga, no entanto, vê progresso e acredita num futuro melhor para o futebol feminino no país.

"Alguns clubes têm carteira assinada. Estão dando essa valorização, que eu acho importante. Essa oportunidade agora dos times de camisa, mesmo sendo obrigados, mas ter o futebol feminino. Infelizmente não são todos, mas dessa forma, eu sei que um dia a gente vai chegar lá".

A simplicidade de Formiga é incrível, mesmo sendo a recordista em Jogos Olímpicos, Copas do Mundo e a jogadora entre homens e mulheres que mais vezes vestiu a camisa da Seleção, quando pendurar as chuteiras ela não quer ser lembrada pelos feitos em campo e sim pela luta por melhores condições no esporte para a próxima geração.

"Não quero ser lembrada como a jogadora que jogou tantos anos, tantas olímpiadas, tantos mundiais e  sim, a jogadora que muito batalhou, muito brigou, sempre buscando melhorias para o futebol feminino no país. O meu objetivo não é receber milhões de homenagens. Se for para receber milhões, eu prefiro que esses milhões se transfiram em coisas boas no futebol feminino".

Poucos estão tão bem preparados para liderar esta luta como Formiga. "Somente quem passou pelo inferno sabe o que tivemos que suportar para chegar ao ponto que estamos hoje.". No entanto, ela ainda tem uma sétima Copa do Mundo pela frente, e então, depois disso, o trabalho pode começar.


A Plan International UK é uma organização humanitária global. Nós trabalhamos para dar a cada criança a mesma chance na vida.